Fechado dentro do cerco de Ovar

Testemunho de Carlos Nuno Granja, professor bibliotecário, escritor, livreiro e programador cultural. “O estado de calamidade em Ovar e o confinamento social são formações rochosas que se consolidam no espírito de qualquer um de nós, aprendo a lidar com um mundo às avessas.”

Escrever um artigo exige que estejamos alinhados com a realidade. E se bem o sinto quanto ao que vou descrever, fechando os olhos, apenas me imaginaria como um qualquer figurante desses filmes de Hollywood, que empunhava a catástrofe através dos seus fantásticos efeitos especiais. Mas a verdade é que, passe a subtil redundância, esta é a realidade, porque eu estou dentro dela, nós estamos dentro dela.

Se me perguntassem na passagem de ano, já no primeiro dia de 2020, o que acharia desta ideia, nada de novo, há filmes e séries sobre isso, livros, Camus, Saramago, não sei, tudo muito básico, ainda assim.

Hoje, refeito do espanto, apesar de incrédulo ainda (mas este efeito passará algum dia?), porque o estado de calamidade em Ovar e o confinamento social são formações rochosas que se consolidam no espírito de qualquer um de nós, aprendo a lidar com um mundo às avessas.

O conceito é mesmo esse, estou dentro de um cerco sanitário [que deverá ser levantado até este fim-de-semana, segundo anunciou a Direcção-Geral da Saúde nesta quinta-feira], ninguém pode sair, ninguém pode entrar. As ruas passaram a estar desertas. Sem qualquer preparação, o modo de vida de toda a comunidade modificou-se, a correria das rotinas fechou-se a um espaço próprio, o medo apoderou-se das pessoas, o pânico está presente em cada pensamento, mas, como em tudo o que de mau acontece, há sempre um lado de resistência que sobressai.

Os vareiros uniram-se em torno de uma causa. O foco transmissor da covid-19 propagou-se sem tréguas entre a comunidade. Só havia um caminho, o confinamento social, o isolamento em casa e o cumprimento do estado de calamidade iniciado no dia 18 de Março. A ideia de distanciamento social, para um povo que é todo ele feito de afectos, já cria o condão de sacrifício, de algo que nos é complicado cumprir. Os vareiros são genuínos, gostam de conviver, de falar abertamente, abrem a alma, são de beijinhos e abraços apertados, esmagam o peito de significado, não estão com meias medidas.

Os meus dias de confinamento não são diferentes dos dias que a maioria dos meus conterrâneos tem vindo a viver. Estamos a ser muito responsáveis e cumpridores. Vem-me à memória a falta que as tertúlias literárias que organizei ao longo de seis anos me têm vindo a fazer. Não devemos desistir do que tanto nos apraz realizar. Nem interessa quantos somos nessa construção. Interessa viver, sem que a desconstrução ou destruição dos outros nos impeça a felicidade. Vejam como a cultura ganhou uma nova dimensão com a quarentena. Não podemos viver sem cultura. Não podemos viver sem a literatura.

Se nunca imaginei viver algo digno dos filmes, também nunca imaginei que cheirar a simples brisa do mar, ouvir o canto dos pássaros no meu quintal ou a observação demorada do meu limoeiro passassem de pormenores desvalorizados da vida para adquirirem grande significado no meu espírito.

A transmissão avança, debatemos a renovação do cerco sanitário, as empresas abrem ou não abrem, vamos vencer, diz-se à boca cheia, a esperança renova-se, além da guerra ao vírus, há também a guerra dos números. O número de infectados cresce, o de óbitos também, os recuperados vão retomando o corpo e o espírito, venceram. Haja uma boa notícia para nos animar.

Abre o hospital de campanha para ampliar a capacidade de resposta. Tem um nome apropriado, Anjo d’Ovar. A fé move-nos, mesmo entre os não crentes, como se de uma força interior se tratasse, para nos fazer acreditar, para nos fazer resistir.

O Hospital Dr. Francisco Zagalo está a rebentar pelas costuras, os seus profissionais de saúde são inexcedíveis. Um aplauso para todos eles, bem como a nossa eterna gratidão.

As instituições de solidariedade social estão na linha da frente a ajudar as famílias, há voluntários, muitos, que se oferecem para a luta. Somos gente do mar, gente do campo, gente humilde que não se entrega à primeira contrariedade.

Chega-me esta reflexão, oxalá saibamos aprender com isto e possamos desenvolver um mundo melhor. São tempos de chumbo estes e temos de nos moldar, não apenas para o presente, mas olhando o futuro, de que vamos ser capazes de melhorar a nossa forma de vida, de respeitar o planeta em que vivemos, a natureza e os animais, de criar a harmonia necessária para que a humanidade seja mais justa e, acima de tudo, mais humana.

Em Ovar, vamos resistir e vamos levantar a cidade, as nossas freguesias, o nosso concelho. Vamos comprar nas nossas lojas, fazer rejuvenescer o nosso comércio, mostrar a fibra vareira, retomar as nossas vidas com mais solidariedade, com mais partilha, com mais amizade. Vamos renascer das cinzas. E voltaremos aos abraços e beijinhos nas ruas, para ouvir o pregão da varina de novo a ecoar ao dobrar da esquina, bem perto, bem longe, bem fundo de cada coração. Assim seja.

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