Descarbonização: e depois da pandemia?

Não nos deixemos iludir. Alguém regozijar-se com o declínio das emissões nas actuais condições económicas tem o mesmo valor lógico de uma pessoa obesa se regozijar por estar a perder peso no processo de combater um cancro que o afecta.

No final de 2018, num passado não tão longínquo, mas que agora parece já tão remoto, o IPCC divulgou projecções de emissões de dióxido de carbono e de outros gases de efeito estufa na ausência de significativos esforços de política ambiental e fez avisos importantes sobre o seu impacto em termos de alterações climáticas. O ponto fulcral da comunicação era que, se queríamos evitar alterações sérias, irreversíveis e de devastadoras consequências, existia uma janela de oportunidade em que teríamos, até 2030, para reduzir as emissões em 50% em relação aos níveis de 2010 e até 2050 para atingir a neutralidade carbónica.

A reacção a este posicionamento do IPCC foi generalizada, com as mais diversas personalidades, governos e instituições internacionais a pronunciarem-se sobre o assunto. Na verdade, não houve muito progresso. A atenção ao assunto foi limitada, os acordos de política ambiental foram raros e as políticas realmente implementadas bastante fragmentárias. Mas pelo menos uma conversa dolorosamente lenta parecia ter começado sobre o assunto da descarbonização da economia.

E eis que surge a pandemia. O antigo normal tornou-se uma lembrança distante. Com medidas de protecção e de distanciamento social restritivas veio o rápido crescimento do desemprego e uma desaceleração tremenda da actividade económica. A possibilidade de que esta pandemia leve a uma grave depressão económica a nível mundial não pode ser descartada.

A recessão económica mundial induzida pela pandemia trouxe consigo um notável declínio da poluição, em geral, e das emissões de dióxido de carbono e outros gases de efeito de estufa, em particular. Essas notícias foram muito bem recebidas em alguns sectores da opinião pública e, de alguma forma, vistas como o lado positivo e redentor desta pandemia.

Não nos deixemos iludir. Alguém regozijar-se com o declínio das emissões nas actuais condições económicas tem o mesmo valor lógico de uma pessoa obesa se regozijar por estar a perder peso no processo de combater um cancro que o afecta. Não apenas existe uma relação desproporcional entre os benefícios da perda de peso e os enormes e imediatos perigos do cancro, mas também, claramente, se o cancro for eliminado, seria de esperar que a pessoa recuperasse lenta mas firmemente o peso anteriormente perdido. A menos que, é claro, a própria experiência do cancro seja de alguma forma entendida e internalizada pela pessoa como uma experiência transformacional.

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A pandemia deu uma trégua momentânea ao ambiente e permitiu imagens como esta: Madrid vista de Alcala de Henares, a 30 km de distância, numa imagem de 14 de Abril EPA/FERNANDO VILLAR

Mas consideremos especificamente a questão da descarbonização do tecido económico. O que acontecerá com as emissões de dióxido de carbono, à medida que a economia mundial recupere da situação em que a actual pandemia a deixou? Num cenário optimista, políticas públicas sérias serão progressivamente accionadas, levando a uma recuperação significativa, a qual reverteria muitas das perdas económicas e financeiras devidas à pandemia. A actividade económica recuperaria, com mais emprego, mais poder aquisitivo e uma nova alegria de viver, estimulando o crescimento económico.

Mas o que significa isto para a descarbonização da economia? Considerem-se algumas das componentes-chave da situação económica que inevitavelmente enquadrarão o processo de recuperação.

Primeiro, as entidades encarregues de formular e implementar as políticas para combater os terríveis efeitos económicos da pandemia terão pouca ou nenhuma inclinação para lidar com as questões ambientais. Muito mais, se houver mesmo que seja uma remota preocupação de que isso poderá afectar negativamente a recuperação económica, uma postura adoptada na prática por muitos sectores do espectro político. Independentemente disso, as questões ambientais estão agora muito distantes das linhas de frente das preocupações de política económica.

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Mapas de concentração atmosférica de NO2 no Nordeste dos EUA em Março de 2015-2019 (média) e Março de 2020 EPA/NASA

Segundo, no processo de combater os efeitos económicos da pandemia, as posições orçamentais dos sectores públicos tenderão, inevitavelmente, a deteriorar-se. Isto, quando em muitos países a posição orçamental era já de si bastante frágil mesmo na ausência da pandemia.

Terceiro, a crise económica traduziu-se num enorme excesso de oferta nos mercados de petróleo e em preços de combustíveis fósseis extremamente baixos. Prevê-se que os preços do petróleo levem muito tempo para se recuperar – não antes do final de 2024 –, de acordo com o FMI.

Quarto, como é normal nas circunstâncias de incerteza económica, os gastos com investimentos foram bastante afectados pela pandemia. Isto é particularmente verdade no caso de projectos de investimento relacionados com energias renováveis, energias alternativas e tecnologias para melhorar a eficiência energética. A conjugação da recessão e de preços dos combustíveis fósseis historicamente baixos traduziu-se num bloqueio completo destes investimentos.

Nestas condições, e a menos que a pandemia actual seja internalizada como um evento transformacional, o resultado de qualquer recuperação económica significativa será uma enorme retoma nas emissões. Qualquer redução nas emissões observada durante a actual pandemia e a recessão por ela induzida serão mais do que compensadas pelo aumento de emissões durante a recuperação. Não é descabido assumir que, ao sairmos desta crise, as emissões até 2030 sejam ainda mais altas do que os níveis inicialmente projectados pelo IPCC num cenário de “business as usual”.

O ponto é que a actual situação económica e de saúde possui todos os ingredientes necessários para resultar numa deterioração a médio e longo prazo da situação em termos de emissões de dióxido de carbono e nas consequentes implicações em termos de alterações climáticas. Na melhor das hipóteses, a pandemia significará que vários anos foram perdidos na corrida apertada contra o tempo para combater as mudanças climáticas conforme e de acordo com a calendarização preconizada pelo IPCC.

A menos, é claro, que a actual perturbação da nossa vida seja internalizada. Como um aviso contra a complacência humana em lidar com o mundo que nos rodeia. Como uma declaração de que podemos de facto ser uma espécie avançada, mas que somos também bastante vulneráveis. Como um lembrete de que podemos saber muito sobre ciência e tecnologia, mas que não sabemos tudo. Como um empurrão na direcção de adoptarmos comportamentos e políticas ambientalmente sustentáveis.

O que significaria esta mudança de paradigma em termos de formulação de políticas económicas? No mínimo, levaria a não esquecer a questão da descarbonização como enquadramento ao considerar, projectar e implementar políticas para promover a recuperação económica. Mais desejável seria reconhecer-se e internalizar que o melhor momento para implementar políticas de descarbonização sérias levando à redução de emissões, bem como ao crescimento económico e à justiça social, é exactamente agora. Agora, que a preocupação com o crescimento económico e com a justiça social é mais premente que nunca, é o momento, por exemplo, de implementar reformas fiscais com enfoque ambiental. Por fim, e idealmente, deveríamos encontrar maneiras apropriadas de usar a enorme interrupção não convidada para as nossas vidas, trazida a nós pela pandemia, para implementar algumas das interrupções de mercado necessárias para a descarbonização.

Como espécie, temos de ser como o paciente obeso que ganha a sua experiência com o cancro como uma prova transformativa e que, portanto, após a recuperação da enfermidade, nunca mais se permitirá a ganhar peso, que, entretanto, perdera com a doença. E seremos capazes?

P.S.: Uma reacção natural a este artigo é questionar a sua relevância imediata. Não será este um momento em que todos os esforços devem ser feitos para combater o impacto da pandemia na saúde pública? Com toda a certeza, sim. E, no entanto, o impacto económico da pandemia não continuará a ser marginalizado por muito mais tempo. Isto significa que, muito em breve, as políticas públicas começarão a concentrar-se directamente na questão da recuperação económica. E é aqui que os problemas discutidos neste artigo não podem nem devem ser ignorados.

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