Uma crise com consequências sem precedentes para as crianças

Será nas crianças, e em especial nas mais vulneráveis, que a perda de rendimento das famílias, o isolamento, a falta de apoio, a falta de proteção deixará a sua marca mais profunda.

A atual situação de emergência de saúde pública causada pela covid-19 está a ter um impacto sem precedentes na vida das crianças e as consequências ultrapassam, em muito, a área da saúde. O encerramento das escolas e outras medidas de contenção estão a ter um impacto direto no acesso das crianças a uma educação de qualidade e a serviços sociais essenciais, bem como no aumento dos riscos de abuso e violência, de ansiedade e medo.

A situação atual exacerba as vulnerabilidades e as desigualdades sociais já existentes, em particular nas crianças e jovens em risco. Acresce a esta situação a perda de rendimentos e do emprego das famílias que afetará, severamente, muitos aspetos da vida das crianças e a médio/longo prazo poderá levar ao aumento do risco de pobreza infantil. É importante garantir, durante e após o estado de emergência, os apoios sociais a crianças e jovens, bem como às suas famílias, e em particular às mais vulneráveis.

A preocupação da UNICEF é a concretização de todos os direitos, na sua realização transversal e interdependente. A Educação, Saúde e Proteção são especialmente importantes porque a sua ausência ou fragilidade trazem um prejuízo profundo ao saudável desenvolvimento da criança.

Na área da Educação, mais de metade dos alunos do mundo foi afetada pelo encerramento das escolas em, pelo menos, 120 países, nos quais se inclui Portugal. A nossa experiência diz-nos que quanto mais tempo as crianças ficam longe da escola menor é a probabilidade de voltarem a frequentá-la no futuro. Para além disto, o encerramento das escolas não limita apenas o acesso à aprendizagem, também reduz ou dificulta o acesso a uma alimentação adequada, a programas de saúde e de acompanhamento e à intervenção social e familiar. É, por isso, fundamental assegurar o direito de todas as crianças aprenderem: garantindo o acesso a uma educação à distância inclusiva e de qualidade para todos, conseguindo a continuidade dos programas educativos individuais de cada criança. E, para além das metas curriculares formais, promover a aprendizagem e avaliação das competências pessoais e sociais dos alunos: pensamento crítico, criatividade, autonomia, resiliência, inteligência emocional, estimulando a sua autonomia e a responsabilidade.

Na Saúde, é preciso garantir a resposta à saúde mental; o acesso aos serviços de saúde materno-infantil e infantil e juvenil para que continuem a assegurar uma resposta às crianças garantindo o bem-estar e o pleno desenvolvimento das crianças, nomeadamente promovendo o aleitamento materno, o acesso a serviços de vacinação, às consultas de vigilância e de acompanhamento de crianças com necessidades de saúde especiais.

E não nos podemos esquecer da proteção das crianças. Quando as escolas são fechadas, os empregos são perdidos e o movimento e as deslocações são limitados, a experiência mostra-nos que o risco de exploração, violência e abuso aumenta. Os casos de violência (violência doméstica), maus tratos e abuso sexual, que acontecem em seio familiar, podem aumentar, podem não ser sinalizados, ficando as crianças sem proteção e em grave risco. Também a perda de rendimentos das famílias e o aumento da precariedade afetará em especial os agregados mais vulneráveis, como é o caso das famílias monoparentais. A proteção e segurança das crianças de etnia cigana, das crianças refugiadas e imigrantes e das crianças que, sendo portuguesas, se encontram em situação de vulnerabilidade devido às circunstâncias e condições das suas habitações – muitas vezes sobrelotadas e sem condições de higiene  são também uma preocupação que não pode ficar esquecida e sem apoio. É preciso garantir a adoção de planos de contingência social dos serviços sociais para crianças, dotando-os de recursos adequados para assegurar a continuidade do acompanhamento presencial junto das crianças em risco ou perigo e daquelas que precisam de intervenção especializada (crianças com deficiência; crianças e jovens em acolhimento), tendo em conta o seu interesse superior. A proteção da criança não pode ficar suspensa. Não há como recuperar depois do abuso.

Ao responder a esta pandemia global somos obrigados a implementar medidas de resposta direta para a nossa proteção. Indiretamente estas medidas têm outros efeitos que põem em risco a realização de direitos fundamentais como o acesso à educação, à saúde ou à proteção. Será nas crianças, e em especial nas mais vulneráveis, que a perda de rendimento das famílias, o isolamento, a falta de apoio, a falta de proteção deixará a sua marca mais profunda. É possível – e é nossa obrigação reforçar a resposta e o apoio a estas crianças, porque embora muitos dos danos possam ser reversíveis, ainda que com um custo, outros não o são, deixando o tempo da infância e da juventude irremediavelmente comprometido ou mesmo perdido.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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