Miguel Cadilhe: “Muitas empresas precisam que o Estado lhes pague”

Em entrevista à Lusa, o antigo ministro das Finanças de Cavaco Silva avisa que o Estado devia compensar já os prejuízos das empresas e não só os problemas de tesouraria. Sublinha ainda que Portugal não pode ficar sozinho a lidar com a crise e espera da Europa uma grande emissão de dívida conjunta.

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Adriano Miranda

O economista Miguel Cadilhe defende, em entrevista por escrito à agência Lusa, que há empresas que necessitam que o Estado lhes suporte grande parte dos custos, e não de empréstimos que apenas as vão tornar mais endividadas.

“Muitas empresas precisam que o Estado lhes pague grande parte dos custos correntes permanentes (laborais e alguns fornecimentos e serviços externos) pelos meses de paragem forçada. Não que lhes aumentem o endividamento”, defende o ministro das Finanças dos dois primeiros governos liderados por Cavaco Silva.

Para o economista, as medidas adoptadas pelo Estado “deviam ir rapidamente aos prejuízos” causados “pela ‘paragem’ das empresas” e “não apenas à tesouraria”, e esse apoio tem de ser feito “sem burocracias.”

Admitindo que, “apesar de um pouco atrasado”, o Governo “começou a ter medidas económicas à altura”, o economista lembra que estes são tempos excepcionais, em que “as empresas estão paradas e a causa da paragem não é delas”.

Por isso, Miguel Cadilhe, defende que “o grande, raro, responsável e histórico ‘intervencionismo’ do Estado” deve servir “para estas ocasiões.”

E, como tal, considera, não apenas justo, “como necessário e possível”, que se adopte “uma “política orçamental extraordinária, que tem de ser acomodável num especial quadro supra-anual longo”, até porque, “a alternativa seria ver o vírus destruir, ainda mais, a capacidade produtiva”.

“Como financiar esse intervencionismo do Estado, que é membro da zona euro”, seria “outra face da questão”, sublinha.

Nas respostas encontradas pelo Estado, o economista destaca o layoff, “finalmente ultra simplificado”, como a medida mais importante.

“É uma resposta parcial. O Estado substitui a empresa no pagamento de uma parte dos custos do trabalho parado; os trabalhadores perdem parte do salário; a empresa suporta o restante do salário e suporta todos os outros custos da paragem”, explica o economista.

Miguel Cadilhe interroga-se ainda pelo facto de o layoff não estar a ser aplicado no Estado. “Por que razão os trabalhadores do Estado estão a ser mais bem tratados do que os trabalhadores privados?”, pergunta o economista, lembrando que os funcionários do sector privado estão a perder parte do salário em layoff para manter os empregos e no Estado também há milhares de funcionários parados, mas sem a respectiva perda de salário.

Em termos macroeconómicos, Miguel Cadilhe diz não haver dúvidas de que haverá “uma recessão grave” a nível mundial, que a crise será “desigualmente distribuída pelos países” e que irá provocar, não só quebra do produto, mas também “no emprego” e “desequilíbrios das empresas e das finanças públicas”.

Ainda assim, o economista diz que será uma crise diferente da “chamada Grande Depressão, que a História registou em 1929 e anos seguintes.”

Hoje “dispomos de outra experiência e de outro saber da política económica” e, como tal, o economista diz acreditar que “há ou haverá uma boa conjugação das políticas monetárias orçamentais”.

Por outro lado, “as causas da crise são de natureza diferente” e, como tal, Miguel Cadilhe acredita que “a duração da crise hoje será menor”.

“Portugal sozinho está em maus lençóis”

Miguel Cadilhe considera, por outro lado, que Portugal não atacou os problemas estruturais da economia e, agora, com uma dívida pública elevada, terá mais dificuldades para relançar a economia após a crise provocada pela covid-19.

“Portugal sozinho está em maus lençóis para relançar a economia, na escala que se impõe”, lamenta Miguel Cadilhe, lembrando que “o Estado não tem meios próprios que cheguem” e que a carga fiscal já “é pesada”.

Ou seja, prossegue o economista, sobram os “meios alheios”, por via da dívida pública, a que o Estado poderia recorrer, mas esses “seriam muito caros” ou “estariam pura e simplesmente vedados pela degradação do risco da República”. Isto apesar de, pertencer a uma união monetária, onde o risco é agrupado e, como tal, “muito menor”.

O primeiro ministro das Finanças dos governos de Cavaco Silva lamenta que o país se tenha iludido e não tenha sabido tirar partido da política do Banco Central Europeu (BCE) que permitiu ter juros baixos.

Os últimos números conhecidos para Portugal mostram que o país terminou 2019 com um excedente orçamental de 0,2% do Produto Interno Bruto (PIB), o primeiro saldo orçamental positivo da democracia, mas registava uma dívida pública equivalente a 117,7% do PIB. A média da zona euro, com dados de 2018, apresentava um défice orçamental de 0,5% do PIB e uma dívida pública de 85,9% do produto.

“Deveríamos ter ido às razões de fundo da dívida pública e não fomos, iludimo-nos, beneficiámos da política geral do BCE e tivemos juros extremamente baixos”, explica o economista.

Miguel Cadilhe diz mesmo que “Portugal não mexeu, a fundo, nos problemas estruturais do Estado-administração, que o mesmo é dizer do Estado-despesa e do Estado-dívida”, e lembra, citando de memória, que o primeiro-ministro, António Costa, chegou a dizer que não sabia o que era ou para que servia uma reforma estrutural.

“Agora Portugal vai em contramão numa curva fechada”, diz Miguel Cadilhe para ilustrar a situação do país.

“Defendo há anos mudanças nas funções e nos regimes do Estado, porque o Estado sobrepesa na economia e a dimensão é insustentável, sobretudo em anos maus, e este é um ano péssimo”, lamenta, recordando que escreveu sobre a necessidade desta mudança num livro publicado em 2005, e de novo em 2013.

“Agora, em 2020, poderia reeditar o livro com praticamente as mesmas recomendações dirigidas a um ‘grande reformador’ imaginário, porque, entretanto, infelizmente, a despesa pública e a carga fiscal aumentaram. O dito ‘grande reformador’ não apareceu e não é plausível que apareça em governos de pendor conjuntural”, conclui Miguel Cadilhe.

Espero “uma grande emissão de dívida europeia”

Sobre o papel da Europa nesta crise, o economista Miguel Cadilhe espera que o fundo de recuperação proposto pelos ministros das Finanças da zona euro resulte numa grande emissão de dívida europeia para financiar o relançamento da economia.

Numa avaliação à actuação das autoridades europeias perante a crise provocada pela covid-19, o economista reconhece que “o Eurogrupo cumpriu com visível dificuldade uma primeira etapa”.

Agora, lembra Miguel Cadilhe, “a segunda etapa da corrida será o prometido fundo de recuperação” e aí diz esperar “uma grande emissão de dívida europeia, exclusiva, com o fim de financiar medidas de compensação, indemnização, defesa e relançamento da economia”.

No dia 9 de Abril, numa ‘maratona’ negocial do Eurogrupo, os responsáveis pelas Finanças comunitárias chegaram a acordo sobre um pacote financeiro superior a 500 mil milhões de euros para fazer face à crise provocada pela pandemia da covid-19 que inclui redes de segurança para trabalhadores, empresas e Estados-membros.

Embora tenha sido manifestada nesta maratona negocial vontade política para avançar com um instrumento de recuperação para o ‘dia seguinte’ à pandemia, faltou consenso para definir o seu conteúdo, com o Eurogrupo a passar a ‘bola’ aos chefes de Governo e de Estado da União Europeia (UE) que se vão reunir no dia 23.

Assim, o Eurogrupo acordou apenas a criação de um fundo de recuperação, mas pediu aos líderes europeus para decidirem o financiamento mais apropriado, se através da emissão de dívida ou de formas alternativas.

Ora, para Miguel Cadilhe, a própria introdução da expressão ‘instrumentos financeiros inovadores’, usada pelo Eurogrupo, “ou é meramente enigmática, ou sinaliza uma abertura a hipóteses como a emissão de dívida europeia.”

E se na avaliação que faz ao Eurogrupo o antigo ministro das Finanças de Cavaco Silva diz mesmo saudar o “trabalho de Mário Centeno” e desejar que este continue, já em relação à Comissão Europeia há mais dúvidas.

“A presidente alemã [Ursula von der Leyen] começou por se mostrar mais timorata do que decidida, vamos ver como se desembaraça a seguir nas medidas de relançamento económico”, diz o economista.

Ainda assim, Miguel Cadilhe diz que a Comissão tem excelentes comissários, como a portuguesa Elisa Ferreira na pasta da Coesão e Reformas, ou a comissária da Concorrência, Margrethe Vestager, sinalizando, por exemplo, a recente decisão de permitir, temporariamente, recapitalizações de empresas gravemente afetadas pela crise.

Nota positiva tem o BCE: “avalio bem, na linha de [Mário] Draghi”, diz Cadilhe, recordando o antigo líder da instituição, lugar agora ocupado por Christine Lagarde.

Aliás, o economista cita o artigo publicado por Christine Lagarde em vários jornais europeus no mesmo dia em que se reuniam os ministros das Finanças da União Europeia no qual esta responsável reafirma que o BCE fará tudo para ajudar no relançamento da economia e lembra que a solidariedade é do interesse de cada país.

Miguel Cadilhe lê nesta solidariedade uma “solidariedade ao mesmo tempo política, institucional, financeira e jurídica, traduzida numa grande emissão europeia de obrigações de responsabilidade solidária: todos os países respondem por todos, e por cada um”.

O economista diz mesmo que esta ideia de solidariedade convoca a essencialidade das origens e do futuro da UE.

“Uma ideia antiga e controversa que nunca teve momento tão forte e tão justificativo e tão propiciador como este. Uma solidariedade que, agora, é uma prova de fogo, contra a desigualdade ou mesmo impossibilidade em que muitos dos países, por si só, estarão no acesso aos meios para combater as consequências económicas de uma crise cuja causa é comum e inédita”, explica o economista.

E nesta ideia de emissão de dívida solidária, Miguel Cadilhe, mesmo admitindo que possa haver outras formulações, sugere que a mesma poderia resultar de “um empréstimo por obrigações, beneficiando de muito baixa taxa de juro e de muito longo prazo de reembolso do capital, incluindo um dilatado tempo de carência”.

Estas obrigações, depois de emitidas e colocadas no mercado primário, poderiam ser adquiridas pelo BCE no mercado secundário, “fazendo a sua parte, sem violar regras nem regimes”, explica Miguel Cadilhe.

A dívida teria, no entanto, de ser paga e, para isso, Miguel Cadilhe sugere que a emissão deveria ser solidária, por um “grupo ou por um subgrupo dos Estados membros da UE ou da zona euro”, sendo que “todos” seria “melhor do que alguns”. Depois, nos vencimentos de juros e capital, “cada país pagaria a sua parte, suavemente, muito devagar, durante dezenas de anos”.

Miguel Cadilhe diz ainda que deveria ocorrer “um reforço dos procedimentos de vigilância europeia” e se, ainda assim, “um Estado devedor caísse na desonra de falhar, funcionaria o mecanismo da solidariedade, todos os outros pagariam por ele, proporcionalmente, e ficariam dele credores, com adequada moratória”.

O economista defende também que esta forma de mutualização das dívidas soberanas “não deveria contar para a regra europeia dos 60% da dívida”.

Miguel Cadilhe reconhece que “a ideia não agrada a muita gente”, mas assegura que “é indiscutível que dificilmente outra solução preenche requisitos de proporcionalidade e efetividade perante a dimensão e o ineditismo do problema que a Europa atravessa”.

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