Maria de Sousa foi a personagem que maior impacto teve na ciência em Portugal nos últimos 35 anos

Mais do que a sua investigação específica, terá sido decisiva para o país a acção da Maria na formação e educação, e na formatação dos alicerces da ciência em Portugal.

Maria de Sousa foi sem dúvida a personagem que maior impacto teve na ciência em Portugal nos últimos 35 anos, e como cientista das que mais terá influenciado e que continuará a influenciar, internacionalmente, a compreensão das ciências biomédicas. Os seus trabalhos pioneiros sobre a circulação de linfócitos e a existência de nichos específicos que estas células estabelecem no sistema imune só terão paralelo com as descobertas de Sir James Gowans, que esclareceu o papel fundamental dos linfócitos no estabelecimento da memória imunológica. Triste coincidência, Gowans faleceu há cerca de duas semanas.

É, no entanto, na investigação sobre o papel do ferro na regulação do sistema imune que a Maria investiu grande parte da sua vida científica nas últimas quatro décadas, e aliás a razão primordial que a fez regressar a Portugal. Em pequenas comunidades bastante tradicionais e delimitadas no Norte do país há uma concentração de casos de hemocromatose hereditária, uma doença que se caracteriza exactamente pela acumulação de ferro, que atinge níveis tóxicos no fígado e que pode ser fatal. Os seus estudos permitiram encontrar-se uma terapêutica simples e eficaz para a melhoria e cura dos pacientes. Mas serviram sobretudo de modelos experimentais para a compreensão de como este elemento primordial é circulado pelo corpo e é altamente protegido da sua utilização por diversos micróbios, numa luta interminável pela sobrevivência, tanto do hospedeiro como dos agentes patogénicos.

Porventura, mais do que a sua investigação específica, terá sido decisiva para o país a acção da Maria na formação e educação, e na formatação dos alicerces da ciência em Portugal. É graças a Maria de Sousa e das suas reformas na Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica (JNICT) que temos um sistema rigoroso e ponderado de avaliação científica pela comunidade e para a comunidade, quando antes não havia qualquer sistema credível. E, se se pretende imaginar que não foi uma tarefa hercúlea, basta atentarmos em quantas áreas da nossa sociedade a avaliação do mérito continua a ter resistência ou liminarmente recusada, e quão essas áreas vão definhando.

Quanto à educação, através da criação do mestrado de Imunologia no Instituto Abel Salazar, e mais tarde do lançamento do programa GABBA, um programa de doutoramento em ciências básicas e aplicadas, transversal a toda a Universidade do Porto, para isso combatendo e com sucesso o espírito por vezes arcaico e de capelinhas de muitas faculdades, tão tradicionais à universidade portuguesa (é obra), a Maria conseguiu ajudar a formar, e mais tarde a lançar como investigadores independentes. Uma multitude de brilhantes jovens cientistas portugueses que de norte a sul do país, de Nova Iorque a Los Angeles ou de Inglaterra à Austrália, alcançaram a excelência e estão a moldar o mundo, e a passar o legado de Maria de Sousa através dos seus trabalhos para o progresso da humanidade.

E não se pense que estes são apenas os alunos que a Maria ajudou directamente a formar aqui no Porto. Não conheço nenhum cientista de qualidade formado em qualquer universidade portuguesa, do Minho ao Algarve e passando pelas ilhas, com o qual ou com a qual a Maria, tendo estabelecido uma relação profissional ou meramente de empatia, não tenha tido um interesse profundo e uma preocupação verdadeira pelos respectivos avanços nos vários campos da ciência. E sei que todos eles lhe estão gratos e lhe têm uma admiração infinita.

Porventura não em toda a gente ela apostou. A Maria era muito analítica, inteligente e assertiva, dava mérito e encorajamento a quem o merecia. Creio, no entanto, que não suportava a mediocridade e a imbecilidade, a mesquinhez e a intriga. Mas tinha no fundo uma grande generosidade e apoiava incansavelmente todos aqueles que tinham qualidade e merecimento, tendo muitas vezes para isso que investir pessoalmente no combate a desigualdades e injustiças. Num ano em que as universidades passaram a cobrar uma taxa para submissão de candidaturas a programas universitários, a Maria financiou pessoalmente todos aqueles que se candidataram ao programa GABBA. Foram perto de uma centena os que tiveram com isso uma ínfima oportunidade, que seja, de poder aspirar, mesmo apenas através de uma candidatura, a uma vida, quiçá, mais do que tudo incerta, e que na realidade envolve mais sacrifícios do que se tem qualquer retorno pessoal.

Uma universidade, quase todas em Portugal, que, na minha opinião, se alheia de promover a investigação e mais se preocupa com os meandros da suas querelas internas e jogos de poder, e em promover e sustentar os seus velhos “mestres-de-escola”; um Governo, todos os governos, que, na minha opinião, continua a não perceber que a investigação e a educação são, efectivamente, os verdadeiros motores para o real progresso, cultural, civilizacional, mas mesmo e sobretudo, material da sociedade; um país que, na minha opinião, por nunca ter tido uma cultura científica, não percebe que qualquer melhoria nas nossas vidas (desde a imunoterapia que vai revolucionar o combate contra muitos cancros e doenças degenerativas, à 6ª ou 7ª gerações nas telecomunicações que nos vão permitir fazer coisas impensáveis há poucos anos atrás, ou à simples melhor qualidade dos pneus nos nossos automóveis que nos permitem agora fazer dezenas de milhares que quilómetros sem furos, quando antes não era assim) se devem à investigação científica básica e tecnológica; um Estado que, na minha opinião, continua a achar que a melhor definição de progresso é a optimização da organização dos nossos parcos recursos, no fundo a gestão da nossa pobreza, sem qualquer impulso real no avanço do conhecimento científico e tecnológico; são uma universidade, um governo, um estado, e um país, que... ainda têm muito a aprender. E, infelizmente, a Maria de Sousa já cá não está para nos ensinar e orientar. Faço votos para que possamos continuar a sua luta.

Obviamente que a Maria não conseguiu desenvolver toda a sua obra sozinha, teve a todos os momentos o apoio, muitas vezes incondicional, de colegas, alunos e colaboradores que nela depositaram toda a fé e que lhe deram a força para ir ultrapassando todos os obstáculos e tornar possível o que me pareceu muitas vezes um milagre. Ou vários. Mais do que referir nomes, eles e elas saberão o quão importantes foram para a Maria, e agora para o seu legado.

Não escrevo em representação de nenhum grupo ou instituição, esta é apenas uma singela homenagem e agradecimentos meus e da minha família, por estes 33 anos de apoio e de amizade. Um grande beijinho de gratidão, admiração, e de saudade, meus e da Alexandra, da Guida e do Germano, da Joana e da Marta.

A Maria adorava usar citações filosóficas, os seus trabalhos estão repletos delas e as suas conversas eram ilustrados por sabedorias novas e ancestrais, muitas vezes hilariantes. Eu só por uma vez usei uma citação, e foi para ela. Nesta hora de despedida, aqui fica a segunda, e última, e que melhor do que as minhas palavras conseguem reflectir o que me vai na alma. A Maria a saberá entender.

“When I was a boy of 14, my father was so ignorant I could hardly stand to have the old man around. But when I got to be 21, I was astonished at how much the old man had learned in seven years.” ― Mark Twain

Muito obrigado por tudo, descanse em paz.

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