Esta pandemia é uma surpresa para todos?

A consideração de riscos envolvendo perdas planetárias e catastróficas, com aspectos muito complexos, tende a ser repelida por motivos psicológicos: revela a impotência para os controlar.

“A sorte favorece a mente bem preparada”, Louis Pasteur (1822-1895)
“A fraqueza está em nos considerarmos invencíveis”, Roberto Saviano (1979-)

A ocorrência da pandemia de covid-19 com as características virulentas que conhecemos tendia a ser sentida como algo imprevisível no séc. XXI. Existia uma grande confiança na inovação e na tecnologia, sustentada na inteligência natural ou artificial e nas certezas para um futuro seguro e mais ousado. Seria mesmo assim?

Em Abril de 2015, Bill Gates proferiu uma palestra, no âmbito das conferências TED (Technology, Entertainment, Design) vistas na internet por milhões de pessoas, anunciando que a próxima catástrofe global não seria uma guerra nuclear mas sim as pandemias de vírus. Enquanto apresentava argumentos para a prevenção contra tal acontecimento, exibia-se a representação de um vírus semelhante ao corona. Bill Gates não fazia profecias. Estava muito bem informado e participava em estudos e reflexões bem fundamentadas. Outra situação é a da chamada “literatura premonitória” através da qual escritores de ficção nos transmitem sinais e avisos que a sua sensibilidade detecta. É o caso do escritor sul-africano Deon Meyer, que escreveu um romance que foi publicado em França em 2017 (L'année du Lion) no qual uma epidemia ocorre em África resultante da fusão de dois coronavírus. A descrição dos efeitos é semelhante à descrição na pandemia actual. O escritor estava bem informado.

Refiro ainda a publicação (Setembro de 2019) do 1.º relatório anual do GPMB (Global Preparedness Monitoring Board), uma entidade criada em 2017 pelo secretário-geral das Nações Unidas e que resulta da parceria da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do Banco Mundial. O relatório tem o título “A World at Risk” e teve a coordenação de um conjunto de personalidades de referência no domínio da saúde pública e da política internacional como Gro Brundtland, que foi primeira-ministra da Noruega e directora-geral da OMS, e Anthony S. Fauci, um conhecido especialista dos EUA que agora tem estado presente nas conferências de imprensa de D. Trump. Em 48 páginas, o relatório identifica as necessidades e acções urgentes para acelerar a preparação e a coordenação mundial para enfrentar emergências sanitárias associadas, em particular, a riscos biológicos manifestados por pandemias extremamente letais e com efeitos relevantes na economia mundial.

A pandemia não foi, assim, uma surpresa para todos. Uma investigação na internet permite encontrar (o confinamento forçado do autor deste texto ajudou!) um número considerável de relatórios e artigos publicados nos últimos 20 anos sobre o risco de uma pandemia (das Nações Unidas, Banco Mundial, OCDE, Parlamento Europeu, instituições de seguros, académicos…). Existem estudos sobre estratégias de prevenção, contenção e mitigação, avaliação de perdas de vidas e de danos económicos, de necessidades especiais de investigação científica, de números de ventiladores, de necessidades no reforço dos sistemas nacionais de saúde e exemplos de análises de custo-risco-benefícios associadas a uma redução do risco de pandemias. Convém salientar que as pandemias de vírus e bactérias consideradas englobam não só as designadas como naturais mas também as provocadas acidentalmente em laboratórios e as resultantes de actos de guerra ou de terrorismo. Esta ameaça da bioguerra justifica orçamentos anuais muito significativos em potências militares, nomeadamente nos EUA (com resultados aparentemente pouco positivos face à covid-19), e um secretismo elevado.

A segunda questão relevante é entender a razão pela qual o risco de uma pandemia como a actual parece ter sido uma surpresa e não ter tido, em geral, a nível mundial, medidas de prevenção e resposta mais eficazes. O autor dedicou um terço da sua vida profissional à gestão dos riscos (naturais e tecnológicos) e da resiliência e tem uma explicação para o que aconteceu.

A consideração de riscos envolvendo perdas planetárias e catastróficas, com aspectos muito complexos, tende a ser repelida por motivos psicológicos: revela a impotência para os controlar, o que gera instabilidade social. Em segundo lugar, os custos estimados de medidas eficazes de prevenção e mitigação são muito elevados. No sistema económico-financeiro vigente, como se justificariam investimentos muito superiores ao normal (tendencialmente já insuficientes) em instalações, reservas de equipamento e recursos humanos e folgas financeiras para apoios sociais generalizados para enfrentar eficazmente em todos os países estes acontecimentos de baixa probabilidade e elevadas consequências? Assim, estes investimentos têm de ser maioritariamente públicos.

Ao contrário das novas tecnologias, que podem ter um retorno muito rápido (“criando valor e riqueza” e os chamados “unicórnios”), a concretização dos benefícios é incerta e os investimentos teriam de ser mantidos permanentemente. Finalmente, estas medidas exigem uma coordenação e recursos a nível supranacional, o que não existe actualmente (a OMS tem muito pouco poder operacional). Poder-se-ia colocar a questão da saúde pública não estar sujeita às regras dos mercados de outros bens. Mas estas ideias são por muitos consideradas irrealistas e só as desejamos quando uma pandemia destas nos cai em cima. O que mudará após a crise?

Sugerir correcção