Fazer pão em casa ou começar uma horta? “Uma forma criativa de ultrapassar o isolamento social”

“Existe nisso um sentido lúdico de passatempo, por vezes acompanhado de selfies domésticas, ou de auto-afirmação perante outros”, alerta o investigador Carlos Fortuna.

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Isabel Zibaia Rafael acredita que é a parte emocional que leva ao fenómeno de fazer pão em casa Nadya Spetnitskaya/ Unsplash

Já se deparou nas redes sociais com fotografias de pão acabado de cozer pelos seus amigos, de pratos dignos de restaurante ou mesmo de um jardim de encantar? O isolamento imposto pela pandemia covid-19 impulsionou um regresso às origens e aos hábitos perdidos pela rotina da vida na cidade? Especialistas garantem que não assistimos a “qualquer tipo de primitivismo”, mas sim a “um desafiar da imaginação das pessoas confrontadas com o seu confinamento doméstico”.

O escritor Afonso Reis Cabral, em isolamento na cidade do Porto, sentia a necessidade de se afastar durante algumas horas do dia do “excesso de actualidade” e de ter uma ocupação. Foi então que surgiu a ideia de criar uma pequena horta do jardim do prédio, que estava ao abandono. “Achei que era o trabalho ideal para esgotar o corpo e cabeça”, conta ao PÚBLICO.

Durante cerca de três semanas, mondou o terreno, tirou raízes, até poder plantar as sementes de tomate, alface, pimentos e pepino. Assim nasceu a Horta Covidativa, “um escape e um passatempo” para afastar Afonso Reis Cabral da realidade. “A pandemia tem sido um eucalipto, seca tudo à volta”, compara.

O interesse pelas hortas não é, no entanto, um fenómeno isolado resultado do novo coronavírus, garante a especialista em geografia humana, Teresa Alves: “É uma coisa que já vem de antes, mas agora que as pessoas têm mais tempo, é natural que tenha acentuado.”

Este tipo de iniciativas é “absolutamente compreensível”, por ser “uma forma criativa de ultrapassar o tempo de isolamento social que nos é imposto”, analisa Luís Baptista, especialista em sociologia urbana, professor na NOVA/FCSH, em Lisboa.

Afonso Reis Cabral apela a que não seja romantizada a realidade: “Toda a impulsão do ser humano é para fugir às origens e à dependência da terra.” Ainda assim, a investigadora da Universidade de Lisboa, Teresa Alves, garante que podemos presenciar “um revalorizar de saberes que eram negligenciados e nos quais a população está bastante interessada”. É o caso das hortas “de nível socioeconómico mais elevado com função de lazer”.

Fazer pão é “um conforto” e uma “gratificação”

Todos os dias, Isabel Zibaia Rafael, autora do blogue de culinária Cinco Quartos de Laranja, recebe centenas de mensagens com dúvidas sobre como fazer pão em casa. De todo o mundo, garante, chegam-lhe fotografias de recriações das suas receitas durante estes dias de isolamento. “As pessoas estão mais curiosas”, sublinha a bloguer.

Nos supermercados tem-se tornado difícil encontrar levedura seca, essencial para a confecção do pão. O interesse é tal que Isabel Zibaia Rafael ensinou, durante os últimos dias, os seguidores a fazer massa mãe, um fermento natural. “As pessoas não só estão mais disponíveis, como predispostas a experimentar”, garante.

Fazer pão ou outras actividades domésticas é para muitos uma novidade, explica o investigador do Centro de Estudos Sociais da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, Carlos Fortuna, mas “não é um regresso a qualquer tipo de primitivismo”. “Existe nisso um sentido lúdico de passatempo, por vezes acompanhado de selfies domésticas, ou de auto-afirmação perante outros”, defende.

Já Isabel Zibaia Rafael acredita que é a parte emocional que leva ao fenómeno de fazer pão em casa: “Amassar, ver a massa crescer e o resultado final é muito gratificante — as pessoas precisam desse sentimento de satisfação, dessa alegria”. O pão é afinal também uma questão de conforto.

Um regresso às origens?

Transversalmente, os especialistas acreditam que não se pode concluir que estamos a regressar às origens. O investigador da FCSH Luís Baptista acredita que é prematuro tirar conclusões sobre a pandemia de covid-19, mas que assinala que “o regresso a uma forma mais natural de viver, menos condicionada pelas obrigações do trabalho produtivo e da organização económica e social na lógica do sistema capitalista, é uma ideia recorrente nas sociedades mais industrializadas”.

Será uma tendência histórica, a procura por este tipo de actividades em períodos de crise? Carlos Fortuna, da Universidade de Coimbra, considera “exagerado falar-se de tendência histórica, ainda que as situações de crise possam desencadear novos dispositivos de relacionamento social”.

Há, sim, explica, por seu lado, Luís Baptista, um estímulo para a “fuga para os lugares que consideramos mais seguros” — quer seja, uma casa de férias, um refúgio entre os tachos e na horta. “Num período de crise, a visão destes movimentos que defendem um regresso a formas de vida mais naturais ganha força, mas é cedo para avaliarmos, se, neste momento, essa força é episódica ou virá a ser estrutural”, analisa o especialista.

A incerteza dos tempos vividos estende-se a todos os domínios da vida. Afonso Reis Cabral não sabe onde estará quando for tempo de fazer a colheita do que plantou na sua Horta Covidativa. Só o tempo dirá quem vai colher os frutos do seu trabalho. Esta incerteza, “o risco de desemprego generalizado e uma desestruturação de laços sociais”, analisa Luís Baptista, “poderá ter um papel decisivo no sentido de se encontrar formas alternativas de organização da vida social e económica”.

Na cozinha, no sofá ou no jardim, parece procurar-se um escape à dura realidade do isolamento social. “Lançamos sementes à terra e vamos vendo a crescer ou fazemos a massa do pão e acontece magia. Fomos nós que começamos, mas começa a ter uma vida própria que não depende de nós”, conclui a autora do blogue Cinco Quartos de Laranja. O conforto e a felicidade afinal podem estar mesmo numa folha de alface colhida há pouco ou numa fatia de pão quente caseiro com manteiga.

Texto editado por Bárbara Wong

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