Peritos juntam-se para ajudar crianças e jovens em tempos de pandemia. “Todos somos agentes de protecção”

Todos os olhos serão poucos para garantir socorro a quem está em apuros. Grupo formado por profissionais, de algum modo associados à protecção de crianças e jovens em risco, lança apelo a familiares, amigos e vizinhos.

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Rui Gaudêncio

Nem as crianças e jovens ficam fora da chamada para prestar atenção a qualquer sinal de maus tratos, abuso sexual ou negligência. “Não ignores pedidos de crianças, tuas amigas e conhecidas, nas redes sociais. Contacta-as, diz que estás disponível para ouvi-las e ajudar. Fala com os teus pais para que eles contactem as entidades competentes.”

Chama-se AjudAjudar e é uma iniciativa de um grupo informal formado por peritos, de uma maneira ou de outra, associados à protecção de crianças e jovens em risco. Desde quinta-feira à noite, está no ar um site que aloja um manifesto, alguma literatura científica e uma campanha de que faz parte o apelo de abertura deste texto. Entretanto, foi criada uma conta no Facebook. É só o princípio.

Tudo começou com o psicólogo Pedro M. Teixeira, professor na Escola de Medicina da Universidade do Minho, e a psicóloga Catarina Ribeiro, professora na Faculdade de Educação e Psicologia da Universidade Católica e perita em avaliação psicológica no Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses. Perante a propagação da covid-19 e as medidas de contenção, inquietaram-se com a sorte das crianças e jovens em risco, de repente, dentro de casa com as famílias causadoras de risco. Criaram um grupo no Whatsapp para reflectir, discutir e encontrar estratégias para lhes valer. 

A literatura científica indicia risco de aumento de abuso, maus tratos e negligência de crianças e jovens em contexto de pandemia, distanciamento social, confinamento. Está comprometida toda a primeira linha de intervenção. As crianças deixaram de ir à escola e de frequentar qualquer actividade fora de casa. E a segunda linha, a das Comissões de Protecção de Crianças e Jovens (CPCJ), remeteu-se ao teletrabalho, restringindo reuniões, atendimentos e visitas ao domicílio ao estritamente necessário e urgente. Em maior risco ficam também as crianças e jovens que se encontram em centros de acolhimento temporário e lares de infância e juventude.

“Há aqui um conjunto de circunstâncias que nos levaram a considerar que é preciso garantir uma resposta”, diz Catarina Ribeiro. Convidaram “pessoas de várias áreas que tivessem experiência académica ou profissional com essa população”, como o procurador Filipe Queirós, o juiz José Barros ou o psicólogo Luís Fernandes, do Centro de Apoio Familiar e Aconselhamento Parental da Associação Sementes de Vida (Beja).

“Enquanto entidades e indivíduos que intervêm nesta área, este grupo sente como sua a responsabilidade de assumir publicamente a iniciativa de contribuir para minorar os efeitos que o isolamento social pode ter neste contexto. Face à circunstância presente, urge mobilizar a sociedade civil, sensibilizando-a e informando-a do seu papel insubstituível na ajuda às nossas crianças e jovens em risco e perigo”, lê-se no manifesto, que já reúne mais de 400 assinaturas. “Importa que cada um/a de nós cumpra o seu papel, estando atento/a, divulgando formas de auto-protecção e meios para obter apoio, sinalizando as situações de suspeita de negligência, maus tratos, abusos contra crianças e jovens às entidades competentes em matéria de infância e juventude. Todos/as somos agentes de protecção das crianças e jovens. Todos/as temos a obrigação de ajudar.”

É um apelo lançado a familiares, amigos, vizinhos em forma de frases prontas a divulgar nas redes sociais, um dos sítios mais frequentados por crianças e adultos nestes dias de confinamento forçado. “Não nos queremos sobrepor a nenhuma entidade que tem responsabilidades em matéria de infância e juventude, nem a nenhuma instituição que está no terreno”, salienta outro elemento do grupo, Sónia Rodrigues, investigadora externa da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto e supervisora de casas de acolhimento residencial. “Queremos sensibilizar a sociedade civil para o papel importante que pode ter.”

Outras estratégias estão a ser trabalhadas por aquele grupo, que inclui Sofia Neves, presidente da Associação Plano i, e Tito de Morais, fundador do Projecto MiudosSegurosNa.Net, e outros​. “Temos de arranjar formas imaginativas de impedir que crianças que estejam em perigo fiquem sem ajuda. Todos temos obrigação de estar atentos e sinalizar – responsavelmente, não fazendo denúncias sem fundamento”, realça Sónia Rodrigues.

Vizinhança já fora chamada

A presidente da Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Protecção das Crianças e Jovens, Rosário Farmhouse, tem apelado a uma espécie de vigilância social. Mais do que nunca, cada um deverá ficar atento ao que se passa em casa da sua vizinhança e meter a colher. Além de um folheto destinado a adultos, este organismo produziu dois dirigidos a crianças e jovens, o último dos quais sobre abuso sexual.

“Tens o direito de dizer não”, lê-se no PDF com ilustrações infantis. “Seja quem for essa pessoa adulta (mesmo que gostes muito dela ou dele), podes contar e pedir ajuda a uma pessoa de confiança ou ligar para a polícia. Toda a criança e jovem tem direito à privacidade e respeito pelo seu corpo. Ninguém deve olhá-lo e tocá-lo de uma forma abusiva, obrigando a fazer ‘coisas’ que não são próprias para o seu crescimento saudável. Se estiveres a passar por um momento particularmente difícil, tenta permanecer num local da casa em que te sintas mais seguro/a e aí podes telefonar a pedir ajuda.”

Em caso de necessidade, a comissão nacional recomenda que se telefone para o número europeu de emergência (112), para a linha SOS Criança (116 111), para o Projecto Care APAV (21 358 79 00) ou para a CPCJ da área de residência (disponível no site: www.cnpdpcj.gov.pt). Também se pode recorrer à comissão nacional, através das suas páginas no Instagram ou Facebook.

O SOS Criança foi reforçado, quer em número de profissionais, quer em horário de funcionamento, quer em meios disponíveis. Desde Março, é possível pedir ajuda por WhatsApp (através do número 91 306 94 04), email e chat (soscriança@iacriança.pt ou soscriança.ajudaonline.com.pt) E os resultados estão à vista. Comparando Março do ano passado com Março deste ano, o número de contactos telefónicos quase duplicou (passou de 103 para 205). Juntando isso aos contactos feitos por email e chat, os pedidos de ajuda ascendem a 231 só naquele mês.

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