Quero é ir dançar

Ainda há na Humanidade a pulsão de estar com outros, a prová-lo estão as videochamadas e as festas de anos meio falsificadas que fazemos à distância.

Na semana passada fui a uma festa de anos e esta semana é provável que vá a outra. Foi só vestir-me como deve ser e ligar o computador: à hora marcada os convivas começaram a surgir um por um no ecrã e a festa fez-se com cada pessoa em sua casa.

Um vizinho que espreitasse pela janela naquele momento veria o ridículo da situação. Uma das aniversariantes esteve a passar música numa máquina profissional e os outros puseram-se a dançar, sozinhos, em frente à câmara. Só tinham aquele metro quadrado mesmo em frente ao computador para dançar, caso contrário saíam do plano e era como se saíssem da festa.

Foi divertido e estranho. Depois destas quatro semanas de quase total privação de espaços exteriores e de contacto presencial com outros humanos, qualquer paliativo é bem-vindo. Mesmo que seja uma videochamada de grupo que às vezes tem quebras porque a rede não aguenta tanta gente com a mesma ideia.

Mas isto não substitui, não pode substituir, o verdadeiro contacto com o mundo lá fora, que por ora nos chega exclusivamente pelos mecanismos de mediação que felizmente a Humanidade foi inventando. Eles já tinham um papel grande nas nossas vidas, agora percebemos que estamos mesmo dependentes deles. Se quisermos ver um filme ou uma peça de teatro, se quisermos que alguém nos leia poemas, se quisermos ouvir uma música específica, se quisermos muito comer aquele bolo ou aquele hambúrguer, se quisermos ler notícias… Já não é preciso sair de casa para fazer nada disto.

Acompanhei com interesse o evoluir da situação. Na primeira semana eram concertos e mais concertos em directo, aulas de ginástica no Instagram, livros, filmes e peças de teatro por toda a parte, mil e um artigos de coisas para fazer durante o isolamento. Parecia que toda a gente estava a achar muito divertida esta experiência anti-social, YOLO (You Only Live Once). Depois o ritmo da oferta começou a esmorecer e os jornais puseram-se a falar-nos dos efeitos psicológicos de estar confinado durante muito tempo, dos alertas de crianças e jovens que nos dizem que, afinal, não está tudo na maior e que talvez não possamos passar por esta crise como cão por vinha vindimada. Não me parece mau sinal: ainda não estamos convencidos de que o virtual seja mais eficaz do que o real para a felicidade humana.

O que faremos? Não sei. Pela minha parte, sei que quero ir comer ostras com uma amiga, quero o bolo doce da minha avó, o frango assado da minha mãe, quero ir à festa de gaspacho alentejano de um amigo, quero ir ao cozido no meu restaurante preferido e à francesinha com os meus tios. Quero ir fazer uma visita há muito prometida a alguém que está em Praga, e que talvez daqui a uns meses esteja na Polónia ou na Inglaterra — seja onde for, irei. Tenho viagens apalavradas ao Minho, à Galiza e a Madrid, quero fazê-las todas com quem as combinei.

É irrealista? No curto prazo talvez seja, mas saio desta coisa — e sabe-se lá quando a coisa acaba — com uma grande vontade de mundo. Com muitas saudades de ir ao cinema, ir a um bar e a restaurantes, de andar livremente por Lisboa despreocupado.

Não temos falado o suficiente entre nós sobre esta mudança que ocorre há algum tempo nas nossas sociedades, potenciada pelos estafetas e pelos serviços de streaming: já quase tudo se pode individualizar, nada tem de ser colectivo ou partilhado com outros. A menos que por partilha se entenda uma publicação nas redes sociais, recorrendo a esse mediador que se tornou omnipresente e monstruoso — o telemóvel.

Ainda há na Humanidade a pulsão de estar com outros, a prová-lo estão as videochamadas e as festas de anos meio falsificadas que fazemos à distância. Quando esta coisa acabar vai ser curioso ver o que acontece. Duvido muito da teoria que por aí corre de que haverá festa rija mal acabe o confinamento. Sairemos a medo, tapando os olhos, como o homem que passou toda a vida na caverna e não conhece a luz solar? Ou sairemos confiantes de que este mundo que tratamos tão mal ainda é o nosso e que temos o direito e o dever de usufruir dele com respeito?

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