Covid-19: nos EUA, é a população negra quem mais sofre com o novo coronavírus

A pobreza mantém a comunidade afro-americana mais afastada dos serviços de saúde, e o racismo – explícito ou implícito – exclui muitos doentes negros dos tratamentos mais eficazes. Um problema estrutural que está a ter reflexos na mortalidade da covid-19.

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No exterior do Hospital Roseland, em Chicago, uma das cidades onde é maior a disparidade entre negros e brancos afectados pelo coronavírus Reuters/JOSHUA LOTT
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Populações minoritárias, como a afro-americana, sofrem de doenças, como a diabetes, que aumentam a susceptibilidade ao coronavírus Reuters/JOSHUA LOTT
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Distribuição de máscaras em New Orleans Reuters/KATHLEEN FLYNN

Na região dos Estados Unidos onde mais se nota a divisão entre as populações de brancos e de negros, na área metropolitana de Milwaukee, no estado do Wisconsin, os números das infecções e mortes pelo novo coronavírus destaparam aquilo a que o governador local descreveu como “uma crise dentro de uma crise”. Das 49 mortes registadas até terça-feira, 72% eram de cidadãos negros, apesar de a população afro-americana ser de apenas 26%. E as explicações para esta disparidade, que se estende a outras zonas do país, podem ir muito além dos níveis de pobreza, como sugerem estudos sobre preconceitos raciais implícitos na comunidade médica.

A Grande Milwaukee, uma área de tamanho comparável à região da Grande Lisboa e com quase dois milhões de habitantes, é o território nos Estados Unidos onde brancos e negros vivem mais separados uns dos outros – para que a integração fosse total, três em cada quatro negros teriam de abandonar as suas moradas actuais e mudar-se para zonas de maioria branca.

Quando os casos de infecção chegaram aos 400 mil e as mortes devido à covid-19 são já 13 mil nos Estados Unidos, sabe-se que a maior área metropolitana do Wisconsin está longe de ser o único sítio onde a doença tem matado mais pessoas negras do que brancas.

Mais a sul, a menos de 100 km de distância e já no estado vizinho do Illinois, as mortes entre a população afro-americana de Chicago representam quase 70% do total, numa região onde a população negra ronda os 30%.

Disparidade “inaceitável"

A esmagadora maioria dos estados, cidades e condados dos Estados Unidos só divulga informações detalhadas sobre o impacto da pandemia no que diz respeito a idade e género. Mas as diferenças registadas em cidades como Milwaukee e Chicago, e também em estados como o Louisiana, o Michigan ou a Carolina do Norte, fizeram soar os alarmes no país e já levaram a Casa Branca a reconhecer a gravidade do problema.

“É um problema real”, disse o Presidente norte-americano, Donald Trump, na terça-feira, durante a conferência de imprensa diária sobre a resposta à pandemia. “A população afro-americana tem sido muito atingida, de forma desproporcional.”

Na mesma ocasião, o imunologista Anthony Fauci, um dos responsáveis pela equipa de combate ao novo coronavírus nos Estados Unidos, disse que a pandemia “fez luz” sobre as “inaceitáveis” disparidades entre brancos e negros em relação aos cuidados de saúde.

“Sempre soubemos que doenças como a diabetes, a hipertensão, a obesidade e a asma afectam de forma desproporcional as populações minoritárias, em particular a afro-americana”, disse Fauci.

“Infelizmente, quando olhamos para os problemas de saúde que agravam o resultado da infecção pelo novo coronavírus, as pessoas que dão entrada nas unidades de cuidados intensivos e que têm de receber ventilação, e que em muitos casos acabam por morrer, têm essas comorbilidades, que são prevalecentes de forma desproporcional entre a comunidade afro-americana.”

Ao salientar a gravidade da situação, o Presidente anunciou que as autoridades de saúde vão divulgar mais informação estatística “nos próximos dias”, e disse que espera ter respostas para uma pergunta: “Porque é que a comunidade afro-americana está a ser tantas vezes mais atingida do que o resto da população?”

Teorias da conspiração

Para os líderes da comunidade afro-americana, como Demetrius Young, o comissário da cidade de Albany, no estado da Georgia, a resposta é evidente e já é conhecida há muito tempo: “Historicamente, quando a América fica constipada, a América negra apanha pneumonia”, disse o responsável ao jornal Washington Post na semana passada.

Mesmo assim, a presidente da Câmara de Chicago, Lori Lightfoot, a primeira mulher negra a ser eleita para o cargo, e cujo pulso firme nas ordens de distanciamento social a transformou num alvo para imagens humorísticas na Internet, disse que a disparidade “é de tirar o fôlego”.

“É uma das coisas mais chocantes que vi enquanto mayor desta cidade”, disse Lightfoot ao jornal New York Times.

Como em tantas outras questões, é difícil atribuir uma única causa às consequências desproporcionais do novo coronavírus na comunidade afro-americana. Índices de pobreza e desemprego mais elevados, salários mais baixos, uma menor cobertura por seguros de saúde ou até mitos e teorias da conspiração que surgiram quando a covid-19 era ainda um fenómeno muito distante, são referidos por vários especialistas.

Em Março, o actor britânico Idris Elba, que passa grande parte da sua vida nos Estados Unidos e foi diagnosticado com a doença covid-19, referiu-se às “estúpidas teorias da conspiração de que os negros não apanham o vírus” quando revelou o seu diagnóstico.

Mas é um facto, comprovado por inúmeros estudos ao longo das décadas, que os afro-americanos têm menos acesso aos cuidados de saúde do que a população branca, e são tratados de forma diferente quando chegam aos hospitais.

E não é preciso recuar até aos tempos pré-pandemia para encontrar estatísticas preocupantes. Em Março, a empresa de biotecnologia norte-americana Rubix Life Sciences, do Massachusetts, analisou facturas recentes e descobriu que um doente afro-americano com sintomas como tosse e febre tem menos probabilidades de receber um teste ao novo coronavírus do que um paciente branco com o mesmo quadro clínico.

Racismo “inconsciente"

Nas regiões mais pobres, de maioria negra, onde as pessoas têm mais postos de trabalho que não podem ser desempenhados a partir de casa, e onde têm de se deslocar a grandes distâncias para comprar bens essenciais, porque o comércio local é escasso e mal equipado, a probabilidade de transmissão de infecções virais é maior. Mas os problemas de saúde que deixam estas populações mais debilitadas perante o novo coronavírus não surgem de um dia para o outro – e podem estar relacionadas com o preconceito e o racismo herdados de geração em geração.

“Vários estudos documentam que há menos probabilidades de os prestadores de cuidados médicos prescreverem tratamentos eficazes a pessoas de cor do que a pessoas brancas – mesmo depois de se controlar características como classe, comportamentos de saúde, comorbilidade e acesso a seguros e serviços de saúde”, disse a advogada e antropóloga norte-americana Khiara M. Bridges num texto publicado no site da associação de advogados American Bar Association. Um fenómeno que atribui aos preconceitos “inconscientes” da generalidade da sociedade em relação às questões raciais, que se estendem à classe médica.

“[Os médicos] têm ideias sobre as minorias raciais das quais não estão conscientes. Ideias que os levam a fazer avaliações não intencionais sobre pessoas de cor, mas que acabam por ser prejudiciais”, disse Bridges, citando vários exemplos.

“Um dos estudos mostrou que é mais provável que os médicos que revelam um viés implícito a favor da população branca receitem analgésicos a pacientes brancos do que a pacientes negros. Outro estudo, feito em 400 hospitais nos Estados Unidos, mostrou que os pacientes negros com doença cardíaca receberam tratamentos mais antigos, mais baratos e mais conservadores do que os pacientes brancos”, disse a académica.

“Seria fácil olhar para o cenário racista da década de 1980 e concluir que os tempos eram diferentes e que as coisas mudaram. Mas há muitas coisas que não mudaram”, disse Aaron E. Carroll, professor de Pediatria na Faculdade de Medicina da Universidade do Indiana, num texto publicado no New York Times em Janeiro de 2019.

“Sabemos que o racismo, explícito e implícito, era comum nos cuidados de saúde naquela altura. Muitos estudos mostram que continua a ser”, conclui o médico.

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