Eduardo Cabrita: houve “negligência grosseira e encobrimento grave” do SEF na morte de ucraniano

Ministro anunciou mudanças no centro do aeroporto. Haverá reforço de vigilância e todas as salas terão câmaras de vídeo. As inquirições aos imigrantes serão gravadas.

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LUSA/MÁRIO CRUZ

O ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, disse nesta quarta-feira que “jamais” esteve no Parlamento “por uma situação que mais contrariasse os valores essenciais  do Estado democrático": a morte do ucraniano Ihor Homenyuk naquele Centro de Instalação Temporária (CIT) do Aeroporto de Lisboa, alegadamente por três inspectores do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) que o agrediram até à morte, segundo o mandado de busca que os constituiu arguidos na semana passada. Os três homens de 42, 43 e 47 anos estão em prisão domiciliária com pulseira electrónica. ​

“Não é o Portugal que conhecemos e de que nos orgulhamos nesta matéria”, referiu. O ministro disse não poder responder a algumas questões que têm que ver com o processo de investigação ao homicídio, mas não teve pudor em classificar aquilo que aconteceu, administrativamente no SEF, como “negligência grosseira e encobrimento grave”, que “terá consequências”. “Cabe à IGAI [Inspecção-Geral da Administração Interna] apurar as circunstâncias”, perceber o que ocorreu na manhã de 12 de Março, e no intervalo até à “consumação do seu falecimento”, nomeadamente “o que não foi feito e que pudesse ter levado a evitar, independentemente de erros graves e faltas inaceitáveis, este resultado extremo”.

No mandado de detenção refere-se que um dos inspectores tinha um bastão que terá sido usado para agredir Ihor Homenyuk. O ministro foi peremptório ao afirmar que os bastões não são permitidos àqueles agentes. “Partilho da vossa indignação e da vossa angústia. Não deixarei de fazer tudo para que algo similar jamais se volte a repetir.” 

Eduardo Cabrita anunciou mudanças no CIT, que foram pedidas ao novo director do SEF Lisboa, Fernando Silva, e que poderão passar por acompanhamento “mais eficaz” pela Ordem dos Advogados (OA) dos imigrantes aos quais foi recusada entrada no país. O CIT, que acolhe os imigrantes a quem foi barrada a entrada e requerentes de asilo, está fechado até 30 de Abril. A OA emitiu, aliás, um comunicado na quarta-feira à tarde onde considera que as circunstâncias em que ocorreram esta morte devem ser investigadas de forma exemplar até às últimas consequências”.

Algumas dessas mudanças são o reforço de vigilância e todas as salas passarão a ter câmaras de vídeo; as inquirições aos imigrantes serão gravadas; haverá uma “bolsa de intérpretes”. Além disso, os requerentes de protecção internacional vão “deixar de entrar” no CIT. “Serão reforçados os mecanismos de auditoria e segurança por entidades externas”, revelou. Em preparação, para ficar pronto no fim do mês, estará um novo regulamento, que será submetido à apreciação da provedora de Justiça.

Eduardo Cabrita esteve esta quarta-feira numa audição pedida pelo Bloco de Esquerda, na Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, presidida por Luís Marques Guedes (PSD). Referiu que o SEF instaurou imediatamente uma averiguação interna depois da morte do cidadão ucraniano. A deputada do BE Beatriz Gomes Dias chamou a estes locais “offshores de impunidade” e fez várias perguntas ao ministro, nomeadamente sobre as mudanças no centro. Os deputados interrogaram Cabrita sobre várias questões relativas a esta morte mas também ao próprio funcionamento do centro do SEF.

Segundo as informações que Cabrita obteve, foi no dia 17 de Março que o SEF transmitiu à IGAI e ao MAI a existência de uma morte, indicando que tinha decorrido na sequência de um ataque cardíaco. Transmitiu também que a certidão de óbito “refere paragem cardiorrespiratória, assinada por médico do INEM”. “Tenho conhecimento de que não é assim na manhã de 30 de Março no momento das detenções da PJ, sob coordenação” do Ministério Público, afirmou. 

Cabrita referiu ainda que, segundo o que sabe, Ihor Homenyuk chegou a Portugal a 10 de Março e foi sujeito aos “mecanismos de controlo normais”. Tendo chegado com visto de turista, mas confirmando-se que a sua intenção era trabalhar, foi deportado — mas recusou-se a entrar no avião que o levaria de volta. O ministro referiu o que diz o relatório do SEF e que o PÚBLICO já noticiou na semana passada, nomeadamente que Ihor foi encaminhado para o Hospital de Santa Maria depois de um ataque de epilepsia. 

Na sequência deste caso, e depois da detenção dos três inspectores pela Polícia Judiciária, foi demitida a direcção de fronteira de Lisboa do SEF (António Sérgio Henriques era director de Fronteiras e Amílcar Vicente, subdirector). O MAI anunciou que pediu à IGAI a abertura de um inquérito à direcção e ao funcionamento do CIT e a abertura de processos disciplinares ao director e subdirector de Fronteiras de Lisboa, bem como a todos os envolvidos nos factos. Na audição, Cabrita defendeu a direcção nacional do SEF dizendo que esta colaborou com todas as diligências que levaram à detenção dos arguidos pela PJ.

Centro criticado por várias instituições internacionais

Há anos que o CIT do aeroporto é criticado por várias instituições internacionais e nacionais e pela própria provedora de Justiça. Uma das grandes críticas tem sido a existência de crianças num espaço com capacidade para 58 pessoas e onde não há privacidade. Na sequência deste caso, a provedora de Justiça disse ao PÚBLICO que era “urgente” a criação de alternativas ao SEF do aeroporto — a provedora lembrou que em 2018 recebera denúncias de maus tratos e que as reportou ao SEF. Até agora, nem o SEF nem o MAI responderam à questão do PÚBLICO sobre qual tinha sido o desfecho dessas denúncias. Em entrevista ao PÚBLICO na altura, Maria Lúcia Amaral referiu-se ao CIT como um “no man's land” contemporâneo.

Aliás, de acordo com documentos a que o PÚBLICO teve acesso, estavam menores no CIT na altura em que Ihor terá sido assassinado. Segundo o mandado de detenção, os três arguidos entraram na sala, algemaram o homem de 40 anos atrás das costas, amarraram-lhe os cotovelos com ligaduras, deram-lhe socos e pontapés e usaram ainda um bastão, “enquanto aos gritos lhe exigiam que permanecesse quieto”. Era 12 de Março, pelas 8h15. Foram 20 minutos, interrompidos por “alguns vigilantes”, a quem terão ameaçado — “Isto aqui é para ninguém ver” — e a quem terão dito “agora ele está sossegado” e “isto, hoje, já nem preciso de ir ao ginásio”, lê-se no mandado.

A autópsia revelou a gravidade das agressões que Ihor sofreu: tinha múltiplas costelas partidas, os arguidos ter-se-ão sentado em cima dele, esmagando-lhe o tórax contra o solo, a caixa costal estava partida, o que lhe provocou dificuldades em respirar e posterior asfixia. Havia ainda marcas no corpo das bastonadas e dos pontapés.

O seu óbito foi registado às 18h40, mais de dez horas depois do início da agressão. O motivo da morte evocado pelo SEF foi ataque cardíaco, em sequência de uma crise “de epilepsia”. Mas o médico legista que analisou o corpo percebeu que não podia ter sido essa a causa e alertou a Polícia Judiciária.

 O relatório do INEM diz que Ihor foi encontrado em “paragem cardiorrespiratória após crise convulsiva”. Na ficha do Instituto de Medicina Legal refere-se que o corpo foi encontrado na via pública, uma ficha que o mandado de detenção diz ter sido preenchida por um inspector.

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