O regresso invisível do desemprego numa sociedade em desfiliação

Este terrível momento de suspensão da vida social e económica habitual vai provocar um aumento da instabilidade e da vulnerabilidade social. As pessoas não se vão sentir apenas mais desprotegidas, vão ficar efectivamente muito mais desprotegidas.

Enquanto categoria, o desemprego, tal como o conhecemos, é fruto de uma construção social longa, que se pode fazer recuar, na Europa, à transição do século XIX para o século XX. Foi na viragem de século que o desemprego ganhou contornos mais definidos enquanto categoria de representação e de acção, enquadrada numa perspectiva de intervenção pública. Depois, no seguimento da Grande Depressão de 1929/30, este processo consolidou-se. O desemprego transformou-se em categoria operatória e, progressivamente, em tema prioritário da política económica, evoluindo na sua regulação, com variações no tempo e no espaço.

Com a pandemia, Portugal enfrentará a curto prazo a situação económica e social mais crítica da sua história recente. E o desemprego regressará em massa, se nada for feito para o evitar. Depois de ter sido um problema no tempo da Troika, o desemprego — muito dele absorvido de forma precária em sectores ligados ao turismo, plataformas digitais ou call centres — transformou-se, ilusoriamente, numa espécie de “não-problema”. À subida da taxa de desemprego para valores inéditos seguiu-se uma baixa significativa; e eis que agora a ameaça está de volta e corre o risco de se tornar não um, mas o grande problema. Este terrível momento de suspensão da vida social e económica habitual vai provocar um aumento da instabilidade e da vulnerabilidade social. As pessoas não se vão sentir apenas mais desprotegidas, vão ficar efectivamente muito mais desprotegidas.

Como aconteceria numa clássica crise económica, o desemprego ganharia quase imediatamente expressividade quer pela publicação das estatísticas habituais do Inquérito ao Emprego, cuja realização em boas condições pode encontrar-se ameaçada devido à pandemia, quer pelas tradicionais filas que far-se-iam notar de imediato junto dos Centros de Emprego ou da Segurança Social. Mas agora não. Pelo menos nos próximos tempos não haverá filas de espera físicas.

Em parte, serão substituídas por filas virtuais, em balcões virtuais, para atendimentos igualmente virtuais. Este tipo de atendimento pode ter vantagens se significar uma simplificação burocrática e uma maior eficácia no processamento da informação. Caso contrário, corre o risco de se tornar obscuro, negativamente diferenciador e, portanto, mais um factor disruptivo e gerador de maior instabilidade social. A comunicação interpessoal é vital para o acompanhamento das situações mais vulneráveis sujeitas a maior injustiça social.

Se o actual estado de emergência se mantiver por vários meses, estaremos perante processos generalizados de desligamento e de desfiliação social. Desligamento no sentido em que os quadros de interacção social cessaram de se desenvolver nos contextos habituais de sociabilidade. As pessoas vão perdendo o laço com o outro próximo e isso é por si só um factor desestruturador.

A desfiliação acontecerá no caso de se aliar ao isolamento outras fragilidades sociais e económicas como o desemprego de longa duração. Nestes casos assistir-se-á à quebra de qualquer ligação com o mercado de trabalho que, por sua vez, acentuará ainda mais a quebra quase completa com o resquício de sociedade que a todo o custo ainda se vai mantendo.

Vivemos tempos excepcionais com consequências profundas, muitas delas ainda inesperadas, no tecido social e económico do país. O desemprego vai, infelizmente, regressar (numa escala ainda por decifrar), atingindo muitos trabalhadores e um número alargado de famílias. Ao confirmar-se, este aumento abrupto deverá implicar, desde logo, uma alteração de paradigma sobre o modo como as políticas públicas, particularmente as de combate ao desemprego, têm sido concebidas e implementadas nas últimas duas décadas.

Para responder à crise económica anterior foi mobilizado um vasto conjunto de medidas activas de emprego: medidas de apoio à contratação e criação de empresas, programas de formação, estágios, apoios ao empreendedorismo, contratos emprego-inserção, medidas específicas destinadas a jovens, a desempregados de longa duração, a pessoas deficientes, etc.

Uma oferta verdadeiramente labiríntica, sujeita a alterações ao longo do tempo e pautada por intervenções nem sempre articuladas, nem eficazes. Ao mesmo tempo, restringiram-se as políticas de substituição de rendimentos, colocando-se até em causa o próprio fundamento a esse direito. Introduziram-se mais condicionalidades e dificultou-se o acesso a quem deles necessitava. As políticas de substituição de rendimentos foram reduzidas e secundarizadas, sacrificando ainda mais a condição social dos segmentos da população já fragilizados.

Em alternativa, é fundamental reavivar como resposta à corrente crise uma matriz social-democrata de carácter universalista capaz de garantir que ninguém fique para trás numa situação de completa desprotecção. Qualquer pessoa que agora caia no desemprego não pode inevitavelmente cair na pobreza. Se não conseguir regressar ao mercado de trabalho nos próximos tempos, deverá ter o compromisso por parte do Estado de que terá acesso garantido a rendimento e a todos os serviços públicos disponíveis. Independentemente da política ou do programa, existente ou a criar, e de parcerias a mobilizar, é importante que se salvaguarde este princípio fundamental. É hora de reatarmos políticas universais que promovam o bem-estar social e a coesão social para todos.

Portugal, que se encontrava numa fase de recuperação (ainda inacabada), não suportará mais uma crise social sem que esta provoque um impacto brutal no aumento da pobreza e das formas de desfiliação e de anomia social. Uma sociedade profundamente desigual, empobrecida e desfiliada deixa de ser uma sociedade decente e passa a ser outra coisa, para a qual esperemos não ter de inventar um nome, cada vez mais distante das noções de humanidade e de solidariedade. Teremos de mobilizar as políticas e os recursos necessários que impeçam que as inevitabilidades do costume se tornem novamente deterministas e tomem conta do nosso futuro colectivo.

Artigo escrito no âmbito de uma parceria com a Associação Portuguesa de Sociologia, que sintetiza O Regresso do Desemprego Massivo. Caleiras, J & Carmo, R.M. (2020). (Estudos CoLABOR, N.º 1/2020)

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