O que diz a OMS sobre as quarentenas para lidar com as pandemias?

Sendo nem as taxas de mortalidade nem de contágio tão diferentes entre a Gripe A e a covid-19, será sensato ir contra as recomendações da OMS, com todas as consequências que estão inerentes a tal política?

Em 2010, a Organização Mundial da Saúde publicou um relatório detalhado sobre as melhores abordagens para lidar com pandemias. Tínhamos acabado de sair daquela que ficou conhecida em Portugal como a Gripe A, e este documento tinha como objectivo analisar e fazer propostas de políticas para que no futuro se pudesse lidar melhor com surtos do tipo viral. O título do mesmo, “Limiting Spread”, traduzido para português seria algo como “Limitando a Expansão” e está acessível online, aqui, em inglês.

Das várias abordagens testadas para lidar com esta pandemia e dos estudos empíricos que existem, há várias possibilidades de construção de políticas públicas de saúde, divididas em dois níveis: individual e colectivo.

Ao nível individual, ficou provado que, entre outras, têm muita eficácia para evitar a propagação do vírus: o lavar das mãos com sabão, evitar tocar na cara e na boca com as mãos sujas, tapar a boca e o nariz quando se tosse ou se espirra. Sobre a utilização de máscaras não há evidência científica do seu efeito, mas em todo o caso é recomendado pela OMS para aqueles que estão com tosse ou a espirrar para evitar passar o vírus. Também devem ser utilizados por pessoas que lidam no dia-a-dia com pessoas infectadas.

A nível comunitário, a OMS avaliou várias políticas que podem ser aplicadas. Um das medidas consideradas é a de identificar pessoas e colocá-las em quarentena quando estiveram em contacto com alguém infectado. Contudo, não se encontraram dados que comprovem a sua efectividade. Outra é relativa à limitação de encontros que envolvam multidões e evitar locais sobrelotados. O estudo diz que isto é algo que pode e deve ser pensado, mas como normalmente está associado a outras acções não é possível dizer com certeza que por si só funciona. Os controlos de fronteiras, analisando quem chega e colocando os casos suspeitos em quarentena, é uma das opções muitas vezes tomadas, mas aqui o problema é que quem chega pode estar infectado mas não ter sintomas, ou ser testado e não ser detectado por estar na fase inicial. Como é uma medida disruptiva para a sociedade, não é aconselhada pela OMS.

Por fim, analisaram o impacto de fechar as escolas e os locais de trabalho. A OMS diz que esta é uma medida que muitas vezes os políticos estão inclinados a tomar para lidar com uma pandemia. Contudo, não há evidência epidemiológica que o fecho das escolas e dos espaços de trabalho atrase o impacto geral do vírus, e que mesmo que possa pontualmente fazê-lo, não o fará nas proporções previstas (a ter algum impacto será de forma limitada), e que os impactos socio-económicos são devastadores e ultrapassam os eventuais benefícios que se possam alcançar. Na prática, os políticos devem seriamente considerar este tipo de medidas, já que a ciência não mostra evidência dos seus resultados, e ponderá-los perante os custos que eles poderão causar a toda a sociedade.

Este trabalho foi feito depois da pandemia da Gripe A, que ao início também se pensava que ia matar muitos milhões de pessoas. Pode-se argumentar que agora, com a covid-19, as taxas de mortalidade e de contágio são muito mais altas e, como tal, se poderia considerar esta medida.

Contudo, à medida que mais dados vão saindo, as taxas de mortalidade estimadas para o vírus vão baixando, como mostram este recente estudo na Lancet, que já aponta para uma taxa de mortalidade de 0,66%. Como a covid-19 é mais recente, ainda não há dados a uma escala comparável à análise que se faz da mortalidade da gripe. Por isso, é provável que, mesmo sem vacinação, a taxa de mortalidade da covid-19 não fique de facto tão distante da gripe comum (os tais 0,1%) ou do H1N1.

Quanto à taxa de transmissão do vírus, calculada pelos epidemiologistas com os indicadores R0 e Rt, também à medida que mais dados vão aparecendo, mais baixas são a estimativas das taxas de contágio. Neste momento já se considera que o R0 (que mostra a capacidade de contágio do vírus) anda à volta dos 2.2 para a covid-19. Para o H1N1 em 2009, houve lugares onde chegou aos mesmos valores (no Canadá, México, Singapura, Estados Unidos, entre outros). Quanto ao Rt, que nos fala de como ele se transmite depois da fase inicial e consoante as medidas adoptadas, em toda a Europa ela anda entre o 1.1 na Suécia e 1.9 na Alemanha. Abaixo de 1 significa que por cada caso infectado há menos que um que é infectado, significando de que o vírus já não está a aumentar a sua disseminação. Para o H1N1, encontraram-se valores de 2.4 na Austrália e Japão, 2.2 em alguns estados dos Estados norte-americanos, estando a média mundial entre o 1 e o 2, segundo vários estudos publicados. Como tal, nada diferente em relação à covid-19.

Os números, de facto, da mortalidade associados à covid-19 assustam, nomeadamente os da Itália. Mas um estudo do Instituto Superiore Di Sanitá mostra que metade das pessoas que faleceram tinha pelo menos mais três doenças e que 99% já tinham alguma doença significativa. Além disso, a média de idades de todas as pessoas que faleceram era de 79,5 anos, próxima da esperança média de vida. Será que todas as que morreram em Itália e que nos assustam nas estatísticas realmente morreram por causa da covid-19 ou tinham a covid-19 quando morreram? É uma pergunta levantada pelo epidemiologista John Ioannidis num seu artigo recente.

Sendo nem as taxas de mortalidade nem de contágio tão diferentes entre a Gripe A e a covid-19, será sensato ir contra as recomendações da OMS, com todas as consequências que estão inerentes a tal política? Havendo 300 mortes diárias em Portugal por razões de saúde, estaremos ainda a dar atenção devida a todos os casos de saúde que assolam o país, ou a concentrar todos nossos recursos apenas numa doença que é preocupante, mas que representa apenas uma pequena fracção desse número? Sabendo que radioterapias, consultas e outras acções clínicas estão a ser adiadas para pessoas com cancros e outros problemas de saúde, não estarão a morrer mais pessoas por causa de outras doenças e falta de atenção devida?

Como a OMS diz, é preciso ponderar todos os prós e contras de fechar as escolas e postos de trabalho. A Islândia e a Suécia seguiram abordagens diferentes, tal como a Coreia ou Taiwan, com sucesso e sem paralisarem os seus países. É preciso considerar todas as hipóteses e tomar boas decisões, aprendendo com todas as experiências. E, sendo claro que é preciso tomar medidas, impera que se escolham aquelas que são de facto efectivas e que não ponham desnecessariamente em causa o futuro do Sistema Nacional de Saúde e do país.

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