Coronavírus e trabalho: não é exigível o que pode ser mortal

Estas situações - na construção civil e noutras actividades cuja natureza e organização de funcionamento coloquem estes problemas - carecem de uma atenção e resposta política adequada e urgente.

“Não é exigível o que não é razoável”. Este é um princípio muito invocado na argumentação do Direito mas que, ainda que susceptível de muita discussão pela subjectividade em que assenta e que projecta, pode ter aplicação de ordem geral, em qualquer domínio.

Vem aqui a propósito quanto ao domínio do trabalho, concretamente, sobre o que se sabe que se está a passar em certas actividades onde se continuam a verificar relações de trabalho presenciais.

E estão aqui em causa, pelo que é denunciado publicamente, se não mesmo algumas actividades que foram interditas pela regulamentação do estado de emergência (Decreto-Lei N.º 2-A/2020, de 20/3), pelo menos, actividades cuja continuação de realização não foram interditas por esse diploma e em cujo trabalho que nelas se realiza, pela sua natureza, organização e condicionalismo de qualificações, não pode ser executado em regime de teletrabalho.

Se bem que quanto às primeiras (as que foram objecto de interdição), antes até da questão da (in)exigibilidade aos trabalhadores da presença no local de trabalho, a manutenção da actividade seja, desde logo, um “caso de polícia” por incumprimento do “dever geral de cooperação” (art.º 33.º do DL 2-A/2020), quanto às segundas, a questão que se coloca é a de, perante a legitimidade patronal de (continuar a) exigir a prestação presencial do trabalho, qual e em que circunstâncias, a legitimidade dos trabalhadores em desobedeceram a tal exigência do empregador?

A questão é pertinente, porque é óbvio que em determinadas actividades, se em condições normais de inexistência de epidemia (para já não falar em pandemia) e muito menos de esta se encontrar já na fase de “mitigação” (propagação na comunidade) não é de agora que há muito incumprimento das disposições legais e contratuais em matéria de segurança e saúde do trabalho, muito mais difícil (se não impossível) agora é manter-se a conciliação do trabalho garantindo a manutenção das regras de prevenção da contaminação viral determinadas pela Autoridade de Saúde quanto aos riscos para a saúde (e eventualmente para a vida) de cada um e de todos os trabalhadores afectos a esse local de trabalho de contraírem a covid-19. Ou, pelo “menos”, de serem contaminados (e irem contaminar outros) pelo novo coronavírus.

Um exemplo mais flagrante dessas actividades é a da construção civil. Se bem que em grande parte possa ser executada ao ar livre e, por isso, poder induzir a ideia de um “trabalho saudável”, é, pelos processos, equipamentos, materiais, substâncias e sobretudo (des)organização do trabalho, uma das que suscita maiores riscos, não só de sinistralidade no trabalho (e as estatísticas bem o demonstram, inclusive quanto a sinistralidade mortal) como de morbilidade causada ou associada ao trabalho (se bem que, em Portugal, as estatísticas não o evidenciem, por clamorosa subnotificação de doenças profissionais com origem ou agravamento de algum modo ligado à natureza ou organização do trabalho que se realiza nessas actividades.

Mas, mormente quanto ao risco da propagação da covid-19, em qualquer obra de construção, pelas características sinteticamente atrás referidas desta actividade, é praticamente impossível manter permanentemente o distanciamento social e evitar o contágio por toque em superfícies eventualmente contaminadas por outros intervenientes (ou visitantes) da obra.

Junta-se a isto, com a situação actual, a possível degradação das condições de higiene (nomeadamente quanto a satisfação das necessidades físicas) e de alimentação, em virtude do encerramento de estabelecimentos de “cafés” ou restauração próximos que é habitual serem para isso recurso.

Aliás, tal risco não se coloca “só” na obra propriamente dita mas sim, também, como muito bem sabe quem conhece como funciona esta actividade, no transporte para e do local de trabalho - a construção civil tem nisto uma peculiaridade muito especial, pois que, enquanto na indústria em geral, temos um produto móvel produzido numa fábrica fixa, na construção temos um produto fixo produzido por uma “fábrica” móvel -, normalmente feito em “carrinhas” de 5 ou até nove lugares, sem qualquer hipótese de ser mantido o preconizado distanciamento social. Isto, para já não referir os maiores ou menores ajuntamentos de trabalhadores em locais pré-combinados para, de manhã, esperarem pelas carrinhas. 

Mas, sobretudo, especialmente agora, acresce o facto de muitos trabalhadores, para além da sua condição etária, poderem, sabendo-o ou não, pela sua condição de saúde, estar na condição de sujeitos ao “dever especial de protecção” previsto na alínea b) do N.º 1 do Artigo 4.º do Dec.-Lei 2-A/2020 ("imunodeprimidos e os portadores de doença crónica que, de acordo com as orientações da autoridade de saúde devam ser considerados de risco, designadamente os hipertensos, os diabéticos, os doentes cardiovasculares, os portadores de doença respiratória crónica e os doentes oncológicos"), agravando assim o risco, segundo a opinião da Autoridade de Saúde (e não só), para além de maior morbilidade, de maior mortalidade.

De um ponto de vista legal, e não se tendo a pretensão de aprofundar este aspecto, sempre se poderá dizer que a recusa dos trabalhadores em prestarem trabalho nestas situações e condição pessoal (ou seja, a desobediência à exigência dos empregadores nesse sentido) é legítima, quer considerando inerentes disposições constitucionais (Constituição da República Portuguesa, no que dispõe quanto a “direito à vida”, "direito à saúde” e “direitos dos trabalhadores” - art.º 24.º, 64.º e 59.º), e substantivamente legais (Código do Trabalho - alínea e) do N.º 1 e N.º 2 do art.º 128.º, conjugado com o art.º 331.º).

Porém, quem conhece a realidade das relações e situações de trabalho da construção civil sabe que muitos (a maioria) dos trabalhadores não só não conhecem esses direitos como, agravando isso, nem sequer conhecem ou têm suficiente consciência da sua condição em termos de saúde. De saúde em geral (quanto a eventualmente, estarem no grupo de maior risco, o de sujeito a “dever especial de protecção”) e, mesmo, de saúde no trabalho, aqui por sabido deficiente funcionamento das inerentes estruturas ("serviços da segurança e da saúde no trabalho") legalmente previstas (capítulo IV do Código do Trabalho e Regime Jurídico da Promoção da Segurança e da Saúde do Trabalho, aprovado pela Lei 102/2009, de 10 de Setembro).

Acresce a isto que muitos trabalhadores desta actividade, mesmo conscientes dos seus direitos e da sua condição de saúde a “dever ser especialmente protegida”, para além de estarem numa situação de vínculo precário (contrato a termo ou contrato de trabalho temporário), muitas vezes “embrulhado” em cadeias de sub(sub, sub,...)contratação, têm salários baixos, inibindo-se, por medo de perda do emprego e consequentemente do sustento pessoal e familiar, não só de exercerem os seus referidos direitos como, sequer, de os reivindicar (como já foi denunciado publicamente por sindicatos).

Não obstante o difícil condicionalismo económico, social (e necessariamente) político actual, estas situações (na construção civil e noutras actividades cuja natureza e organização de funcionamento coloquem estes problemas) carecem, não “apenas” na óptica da situação dos trabalhadores mas mesmo de Saúde Pública, de uma atenção e resposta política adequada e urgente, quer do ponto de vista de interdição ou rigoroso condicionamento (também) temporário dessas actividade, quer, conjuntamente (sob o risco de se tornar perversa para os trabalhadores e empresas, sendo certo que o sector é caracterizado por pequenas e mesmo micro empresas), de uma correspondente resposta de apoio económico e social.

Se “não é exigível o que não é razoável”, muito menos é exigível o que não é saudável e, menos ainda, incomensuravelmente, é exigível o que pode ser mortal.

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