Covid-19: Índia poderá vir a ter 300 a 500 milhões de infectados

“Se o coronavírus atacar a Índia como atacou a Europa, será um cataclismo”, avisa a escritora Arundhati Roy. Para grande parte da população é impossível respeitar uma quarentena.

Fotogaleria
Tem havido violência por parte da polícia para impôr a quetentena (na foto Nova Delhi) Reuters/ANUSHREE FADNAVIS
Fotogaleria
Trabalhadores migrantes desempregados com as restrições (Nova Delhi) LUSA/JAIPAL SINGH
Fotogaleria
Trabalhadores migrantes desempregados com as restrições (Nova Delhi) Reuters/PRASHANT WAYDANDE
,Espaço público
Fotogaleria
Grupo d ehomens impede entradas e saídas de bairro em quarentena na capital indiana Reuters/DANISH SIDDIQUI
Fotogaleria
Fábrica de máscaras para as forças policiais Reuters/P. RAVIKUMAR

Por enquanto, os números oficiais de 2341 infectados e 68 mortos (dados de ontem) ainda são baixos comparados com os da Europa ou dos Estados Unidos, mas, avisam os analistas, a Índia é uma bomba-relógio no que diz respeito à provável propagação do novo coronavírus.

Num artigo de opinião no The New York Times, o economista e epidemiologista Ramanan Laxminarayan, vice-presidente para a Investigação e Políticas da Fundação de Saúde Pública da Índia, admitia, citando “estimativas iniciais”, que entre 300 a 500 milhões de indianos pudessem vir a ficar infectados até ao final de Julho.

Mesmo considerando que “a maioria dos casos não teria sintomas ou teria apenas infecções ligeiras”, os números apontavam para que entre 30 a 50 milhões pudessem ter sintomas mais graves.

O estudo feito por um conjunto de investigadores na Índia, Europa e EUA, nos quais se inclui o autor do texto, calcula que no pico da crise poderá haver pelo menos dez milhões de indianos com sintomas graves de covid-19, “muitos dos quais precisarão de ser hospitalizados”.

O problema, alerta o epidemiologista, é que “a Índia tem menos de 100 mil camas nos cuidados intensivos e 20 mil ventiladores, a maioria dos quais nas grandes cidades”. E, sublinha Ramanan Laxminarayan, neste momento, os números são ainda muito baixos porque a capacidade do país para realizar testes tem sido “muito limitada”.

Para agravar a situação, lembra que “um terço da população da Índia sofre de hipertensão e diabetes”, o que os torna mais vulneráveis ao covid-19, assim como o elevado número de fumadores e de pessoas que sofrem de tuberculose ou pneumonia.

Além disso, as grandes cidades indianas têm níveis de poluição elevadíssimos contribuindo para o igualmente elevado número de pessoas que sofrem de doenças respiratórias. Aliás, umas das raras notícias positivas foi a redução, nas últimas semanas, desses níveis que, segundo dados citados num artigo do Reporterre, são responsáveis por um milhão de mortes por ano. 

A caminho, de saco às costas

O problema é como impor uma quarentena a um país com a dimensão e as características da Índia. Desde que, a 24 de Março, o primeiro-ministro Narendra Modi deu ordem para que os 1,3 mil milhões de indianos ficassem em casa (o que duplicou o número de indivíduos em confinamento no mundo) começaram a multiplicar-se as imagens de longas filas de pessoas que se puseram a caminho, a pé e com sacos às costas e crianças pelas mãos, deixando as regiões onde trabalham para regressar ao seu estado de origem. Calcula-se que um grande número delas estejam já infectadas, contribuindo assim para espalhar o vírus pelo país.

As ordens para que trabalhem a partir de casa são também impossíveis de cumprir para grande parte da população num país onde, como sublinha outro artigo do The New York Times, “para muitos o distanciamento social significa fome”. Para a enorme quantidade de vendedores de rua ou de condutores de rickshaws, por exemplo, ficar em casa significa não ter dinheiro para a próxima refeição.

Dos 470 milhões de trabalhadores do país, 80% estão no “sector informal, sem contratos ou protecção das leis do trabalho”. Muitas destas pessoas são a única fonte de sustento de uma família de seis, sete ou oito, como é o caso de uma varredora de rua com seis filhos, citada no artigo. Outras são completamente dependentes de ajuda, como um religioso que diz ser esta a primeira vez que, numa crise, vê fecharem-se as portas dos templos que habitualmente dão comida ou abrigo a quem necessita.

Houve, entretanto, confusão quanto à aplicação das medidas da quarentena, com polícias a deter e a bater em vendedores de legumes que são frequentemente os únicos junto dos quais a população mais pobre consegue abastecer-se, em cidades onde os supermercados existem sobretudo nos bairros habitados pelas classes mais altas. 

A situação é em tudo semelhante no vizinho (e rival) Paquistão (com, até agora, 2247 infectados e 32 mortos, números de ontem da Universidade Johns Hopkins, que mantém um mapa de actualizações da covid-19 no mundo) onde 210 milhões de pessoas receberam também ordem do Governo de Imran Khan para ficarem nas suas casas. Dias antes desta decisão, o primeiro-ministro ainda manifestava dúvidas, dizendo que “se se fecharem as cidades, salvamos as pessoas do coronavírus por um lado, mas deixamo-las morrer de fome, pelo outro.”

A Economist fez uma comparação entre os recursos dos dois países e os da China, citando dados da OMS: enquanto os chineses conseguem ter em média 18 médicos e 42 camas de hospital por dez mil pessoas, a Índia tem, para a mesma quantidade de doentes, oito médicos e sete camas e o Paquistão tem dez médicos e seis camas. Quanto a ventiladores, o Paquistão tem pouco mais de dois mil.

Apelo aos mais ricos

Numa tentativa de travar o desastre económico e uma tragédia social, Islamabad aprovou um pacote de apoios no valor de sete mil milhões de dólares, enquanto o Governo indiano anunciou um plano de 23 mil milhões de dólares para apoiar os mais pobres, nomeadamente através da distribuição de comida. Mas, num país com gritantes diferenças sociais, o primeiro-ministro Modi pediu também a ajuda das famílias mais ricas, sugerindo que cada uma apoiasse nove famílias mais pobres durante a quarentena.

“Uma coisa é certa”, conclui o artigo do Reporterre sobre a Índia, “vai haver uma conjugação, provavelmente para o pior, das crises sanitária, ecológica e social”.

Numa entrevista ao Nouvel Obs, a escritora indiana Arundhati Roy reforça a ideia: “Não temos um sistema de saúde como deve ser para os pobres, nem sequer para a classe média. Imaginem o que é falar de distanciamento social, de gel hidro-alcoólico, de confinamento e mesmo de lavagem de mãos a pessoas que vivem em bairros de lata, nas ruas, em campos de refugiados, pessoas cujas casas foram queimadas na onda de violência anti-muçulmana poucos dias antes do início da epidemia… não tem qualquer sentido.”

Um exemplo da abissal diferença de universos é, segundo a escritora, o facto de o primeiro-ministro Modi ter apelado a que as pessoas fossem às varandas bater as palmas contra o coronavírus. Mas “quantas pessoas têm varandas na Índia”? É por isso que, alerta Arundhati Roy, “se o coronavírus atacar a Índia como atacou a Europa, será um cataclismo”.

Sugerir correcção
Ler 7 comentários