Temos que nos preparar para uma eventual segunda onda pandémica

No contexto da presente pandemia duas perguntas merecem alguma reflexão: deveremos esperar uma segunda onda pandémica? Se tal acontecer, estamos preparados para ela?

Começo por citar Joshua Lederberg, médico americano, especializado em biologia molecular e Prémio Nobel da Medicina em 1958: “A humanidade e os microrganismos patogénicos têm desde sempre mantido uma permanente competição: umas vezes ganhamos, outras perdemos.”

Relativamente aos humanos perdedores desta competição biológica, e referindo-me apenas ao último século, realce para os 50-100 milhões de pessoas que morreram devido ao vírus Influenza H1N1 (gripe espanhola, 1918-1920), para os dois milhões de falecidos em consequência da pandemia pelo vírus Influenza H2N2 (gripe asiática, 1956-1958), para os mais de um milhão de pessoas que morreram entre 1968 e 1969 infectadas pelo vírus pandémico Influenza H3N2 (gripe de Hong Kong), para os 220.000 óbitos verificados em 2009, na sequência da primeira pandemia gripal do século XXI (vírus Influenza AH1N1), ou para os 35 milhões de pessoas que faleceram infetados pelo vírus VIH/sida, desde o início da epidemia, em 1981.

Esta lista poderia ser muito mais extensa se nela incluíssemos outros vírus que “andam por aí”, como por exemplo o Ébola, cuja mortalidade pode chegar aos 90%, o vírus H5N1 responsável pela gripe das aves, que apesar de ainda não ter adquirido a capacidade de se transmitir de pessoa a pessoa, provocou a morte a 60% daquelas que infectou, ou os outros dois coronavírus patogénicos para a espécie humana, o SARS-CoV e o MERS-CoV responsáveis, respetivamente, pela Síndroma Respiratória Aguda Severa (2002) e pela Síndroma Respiratória do Médio Oriente (2012), entidades associadas a uma mortalidade de 10 e 30%, respetivamente.

Às vezes esquecemo-nos, mas, apesar de todos os avanços da Medicina, continuamos, muitas vezes, a perder o combate às doenças provocadas pelos microrganismos.

Como infelizmente sabemos, estamos a viver a segunda pandemia deste século, desta vez provocada por um novo coronavírus, batizado de SARS-CoV-2 pelo Grupo de Estudos do Comité Internacional de Taxonomia dos Vírus.

A origem da infeção esteve, tal como como aconteceu com o SARS, num mercado de animais vivos, desta vez na cidade de Wuhan, em que se comercializavam animais selvagens, que são os suspeitos da transmissão do coronavírus ao Homem a partir de morcegos: civetas no caso do SARS e o pangolim chinês na covid-19. Neste último caso, apesar dos coronavírus encontrados terem uma semelhança genética de 85-92% com o SARS-CoV-2, não há a certeza de que foram estes mamíferos a transmiti-lo ao Homem. Entretanto, à cautela, o Governo chinês mandou encerrar este tipo de mercados, tal como tinha feito aquando da epidemia do SARS – “casa roubada, trancas na porta.”

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REUTERS/Lindsey Wasson

Na altura em que este texto estava a ser escrito a pandemia já tinha atingido 184 países, infetado mais de 725.000 pessoas e provocado a morte a mais de 34.000, com uma taxa de letalidade de 4,5%. Estes números reportam-se apenas aos casos confirmados, havendo estudos que apontam para que o número real possa ser dez vezes superior, devido a todos aqueles casos que, sendo pouco sintomáticos ou mesmo assintomáticos, não levam à realização de testes. Mais tarde, com outro tipo de testes, os testes serológicos, teremos uma informação mais precisa sobre a verdadeira incidência desta infeção.

Em Portugal, o combate à pandemia foi estruturado tendo como objetivo aplanar o mais possível a curva epidémica, de modo a reduzir o impacto sobre os serviços de saúde e permitir uma menor incidência e mortalidade. Este modelo, que tem como consequência prolongar o período de infecciosidade – que poderá durar vários meses –, está a dar sinais de sucesso. Estamos em plena fase ascendente da curva, mas o ritmo de crescimento já foi maior, podendo tal traduzir a eficácia das principais medidas implementadas: isolamento social da maioria dos cidadãos – sobretudo dos mais idosos –, quarentena para todos os casos suspeitos ou confirmados e restrição à circulação das pessoas. Perspetiva-se que assistiremos no final de Maio à inflexão da curva, momento a partir do qual, se tudo correr bem, passaremos a ter um abrandamento diário no número de novos casos.

Vivemos uma pandemia provocada por um vírus respiratório com uma inusitada capacidade de disseminação, em parte devida ao próprio agente, que apresenta um elevadíssimo “número básico de reprodução da infeção (RO)”, situado entre dois e três, significando que, em média, uma pessoa infectada contagia outras duas ou três antes de ser isolada (na gripe, doença paradigmática de infecciosidade, esse número não ultrapassa o 1,8). Porém, outra parte diz respeito à demografia e à nossa capacidade de mobilidade. Vivemos cada vez mais em grandes aglomerados populacionais – mais de metade da humanidade vive em cidades, por vezes gigantescas, como a cidade de Wuhan, com os seus 12 milhões de habitantes, mais do que toda a população de Portugal – e viajamos generalizadamente por todo o planeta. Ambas as características são favorecedoras da transmissão dos vírus respiratórios. Nos dias de hoje estes vírus viajam de avião, não precisam de passaporte, dão a volta ao mundo em 24 horas... e à noite estão nos telejornais.

No contexto da presente pandemia duas perguntas merecem alguma reflexão: deveremos esperar uma segunda onda pandémica? Se tal acontecer, estamos preparados para ela?

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REUTERS/Sergio Perez

Relativamente à primeira pergunta deparamo-nos com variáveis que não dominamos, visto tratar-se de um novo microrganismo e, portanto, com muito do seu comportamento ainda desconhecido.

Porém, vejamos dois exemplos de sinal contrário. O seu irmão, o SARS-CoV, causador da Síndroma Respiratória Aguda Severa, circulou em 2002-2003 por 26 países, infectou 8098 pessoas, provocou 774 óbitos e, passados oito meses, tal como apareceu, desapareceu.

O exemplo de sinal contrário vem do vírus Influenza H1N1, responsável pela terrível pandemia da gripe espanhola, o maior desastre demográfico do século XX. Este vírus, em dois anos, varreu o planeta em três ondas pandémicas, sendo a segunda particularmente mortífera.

Ora acontece que o presente coronavírus tem um potencial de disseminação muitíssimo maior (R0 de 2,2 versus R0 de 1,8 do H1N1) e, ao ter-se espalhado literalmente por todo o mundo, tem todo o potencial para ficar a circular no planeta. Se tal acontecer, e é quase certo que vai acontecer, então será expectável que tenhamos duas ou mesmo mais ondas pandémicas, que poderão ser mais ou menos agressivas que a atual, dependendo da evolução genética do próprio vírus.

Acontece que no nosso país – e na grande maioria dos países – o combate ao vírus foi estruturado com o objetivo de evitar o maior número possível de casos infecciosos simultâneos. Tal traduziu-se por um muito menor número de doentes e de óbitos mas, por outro lado, tal abordagem origina que a grande maioria dos portugueses permaneça sem qualquer imunidade contra o coronavírus. Com exceção daqueles que foram infectados, todos os outros mantêm uma total suscetibilidade a esta infeção. Estamos muitíssimo longe da chamada “imunidade de grupo”, que acontece quando 60-80% da população adquire defesas imunológicas quer através da infeção, quer através da vacinação – que vão dificultar a transmissibilidade do vírus na comunidade.

Se fizermos um exercício teórico no qual 100.000 portugueses serão infectados na presente onda pandémica, tal significará que após ela terminar, 99% da nossa população continuará suscetível ao vírus, com potencial de adoecer, caso ele continue a andar por aí. Na ausência de uma vacina, a imunidade contra este vírus só pode ser adquirida de forma natural, através da infeção.

É por isso que é tão urgente a investigação de fármacos eficazes (para tratar) ou de uma vacina (para prevenir). Vivemos tempos excecionais. Esperemos que essa excecionalidade permita que a ciência se supere e que essas armas terapêuticas sejam encontradas num espaço de tempo também ele excecionalmente curto.

Se após a presente onda nos virmos confrontados com uma nova onda pandémica, os decisores políticos vão ter que tomar decisões muito difíceis; apesar da vida humana prevalecer sempre (!) relativamente à economia, será muito problemático enviar de novo para casa, para isolamento, quase toda a população.

Relativamente à resposta à segunda pergunta, ela deve integrar uma apreciação ao trabalho até aqui realizado. Em minha opinião devemos ter orgulho na estratégia e na estrutura criadas pelas autoridades de saúde portuguesas no presente combate! Houve erros? Seguramente que sim. Por exemplo, em minha opinião, no início da pandemia, deveríamos ter aconselhado formalmente a quarentena a todos os provenientes de países com elevados níveis de infeção (China, Coreia do Sul, Irão, Itália e Espanha) ou implementado a medição automática da temperatura corporal a todos aqueles que entrassem através dos portos e aeroportos. Com estas medidas teríamos, seguramente, atrasado o início da pandemia e reduzido o número de casos.

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REUTERS/Sebastian Castaneda

Não sabemos se teremos ou não uma nova onda pandémica, mas caso ela aconteça deveremos melhorar a nossa estrutura de combate, corrigindo ou melhorando alguns aspetos. Deveremos ter uma estratégia de combate mais agressiva. Assim:

i) Deveremos criar estruturas ambulatórias e de internamento apenas dedicadas aos doentes infectados. A concentração dos doentes infectados nestas estruturas é uma componente importante no combate à transmissão do vírus a outras pessoas. O bastonário da Ordem dos Médicos tem razão.

ii) Deveremos ter uma política diagnóstica muito mais agressiva. Os testes PCR e RT-PCR deverão ser estendidos de forma sistemática – para além de a todos aqueles que têm que ser internados (principal prioridade) – a todas as pessoas que estão sintomáticas, a todos os que tenham a mais leve possibilidade de estar infectados, aos profissionais de saúde e às pessoas vulneráveis e seus cuidadores. O rastreio de grupos populacionais particulares também deve ser considerado. É, também, necessário o alargamento do número de unidades com capacitação para a realização dos testes, com um tempo de resposta rápido – não se pode estar dois dias à espera de um resultado. O diagnóstico precoce é a peça chave no combate à infeção. “Testar, testar, testar” serve para identificar, isolar e tratar quando indicado. Acrescenta certeza ao que estamos a fazer.

iii) Deveremos, igualmente, adotar uma política de proteção respiratória mais ambiciosa. A utilização de máscaras deverá ser alargada a todos aqueles que apresentem maior vulnerabilidade, quando em contacto com outras pessoas ou nas visitas aos serviços de saúde ou outros locais de risco. Tal como se fez relativamente à técnica da lavagem das mãos, têm que ser divulgadas as normas para o seu uso correto. A máscara facial foi e é uma peça fundamental no combate à covid-19 em todos os países asiáticos.

iv) E, por fim, as estruturas residenciais de idosos precisam de uma abordagem muito mais exigente relativamente a todos os que aí trabalham, sendo aqui que uma política agressiva de testes diagnósticos tem a maior justificação.

Vivemos tempos que já foram vividos por gerações anteriores, as gerações das epidemias da peste, da varíola ou da gripe espanhola. Com vantagens e desvantagens. Quanto a estas, vivemos numa sociedade de grandes concentrações de pessoas e movemo-nos com extraordinária rapidez e facilidade por todo o planeta. Mas também usufruímos de vantagens nunca antes vividas: temos uma Ciência e uma Medicina como jamais tivemos, postas ao serviço da Saúde dos cidadãos. Resta-nos atuar com competência para podermos vencer mais este inimigo. E vamos vencê-lo. Mas devemos fazê-lo com a humildade bem expressa numa outra frase de Joshua Lederberg, com que termino: "Um simples vírus pode ser a maior ameaça ao domínio do planeta pelo Homem.”

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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