Mãe, espera por mim

Escrevi a pensar na minha mãe, porque o medo é grande e está à nossa porta, dentro da nossa casa. Mas é em nome de todos os nossos velhos.

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Mãe DR

Minha mãe,

as voltas que a vida dá. Tanto tempo passei na vida a fugir de casa que agora só tenho tempo para pensar em quando poderei voltar.

Quando é que vens cá, filho?
Não sei, minha mãe, não sei.

Agora este não sei, mãe, é mesmo verdade. Não te estou a enganar para aparecer de repente e alegrar-me com essa surpresa infantil de nunca dizer quando chego e que é uma tradição de toda a nossa vida.

As nossas tradições, mãe, estão às portas da morte.

Quando é que vens cá, filho?
Amanhã, mãe.
‘Tás a mentir, não ‘tás?
‘Tou, mãe.

Os cabelos brancos da minha mãe, uma cabeleira que até aos 84 anos cresce como se não houvesse amanhã. Os cabelos brancos da minha mãe caem como ondas sobre os seus ombros nos seus casaquinhos cinzentos ou pretos ou cinzentos e pretos. Veste outra cor, mãe. Ora, não sabes que a mãe está de luto?

Estamos todos de luto, mãe, e é o pior dos lutos, estamos já a preparar-nos para o luto do futuro.

O medo, mãe, é muito o medo. Quem tem cu tem medo, filho. Os cabelos brancos da minha mãe caem como ondas sobre os seus ombros e os seus olhos no mar são os meus olhos no mar. Nunca é o mesmo mar, é sempre a mesma rocha. Tens ido ver o nosso mar, mãe? Sabes que tu nasceste no mar e depois a ti Jacinta trouxe-te numa cestinha e depois ficaste comigo e eu tratei-te sempre bem, a mãe alguma vez te tratou mal? Nunca, mãe, sempre bem, sempre bem. Agora vocês é que são a mãe e eu a filha. É verdade, mãe, e faz tudo o que o Alberto diga, faz tudo o que a Ana diga, ouviste?!, isto é um perigo. 

Ahahahah, ri-se a minha mãe. Ouviste, Ana — diz para a minha sobrinha do outro lado do telefone. Diz que tu e o teu pai é que sabem tudo e que tenho de fazer tudo o que tu dizes, que tu é que sabes. Promete-me que fazes tudo o que eles digam, que não vais à rua, nada de ir à rua. ‘Tá bem, filho, a mãe sabe que anda aí esse bicho.

As costas da minha mãe viradas para mim, o mar que a parece cercar, ao fundo o nosso Palheirão, as ondas fazem renda. É tão bonita a nossa praia, Luís. É sim, mãe, é nossa, é nossa para sempre. A minha mãe é mais linda do que a praia mais linda do mundo.

Não vejo agora os olhos da minha mãe no mar mas os olhos da minha mãe no mar são os meus olhos no mar. Vejo a fotografia. É sempre a mesma fotografia, no mesmo sítio, o mesmo mar, as mesmas rochas, o mesmo céu e a minha mãe a olhar o mar, o seu corpo a erguer-se como uma rocha sobre a praia, as mãos da minha mãe pousadas sobre o muro branco, a minha mãe protegida pelo muro branco. 

A cada regresso, aí vamos nós, eu mais a minha mãe, para aquele canto do muro em frente da capela e a fotografia repete-se e repete-se e repete-se... Sempre viva, a fotografia.

Já houve alturas em que voltava com medo: as doenças, a idade, a cabeça, a morte do meu pai, a morte das minhas tias que eram também minhas mães, as mortes. A morte da minha mãe, isso é que nunca, só quando tiver de ser. Eu estou pronta, filho, mas é quando Deus quiser. Está a dar o terço na televisão, mãe, vai ouvir.

A minha mãe diz terços e rezas, dança e tem canções. A minha mãe diz sempre a mesma quadra em frente do mar. Ó mãe diz lá aqueles versos pròs senhores ouvirem lá no jornal, aqueles do ó mar fundo, ó mar fundo. E a minha mãe põe aquele ar de sábia, que põe sempre quando se prepara para nos dar conselhos que nos vão salvar a vida e diz:

ó mar alto, ó mar alto
ó mar alto sem ter fundo,
mais vale andar no mar alto
do que andar nas bocas do mundo.

Ah, mãe, que anda aí nas bocas do mundo um bicho que nos vai matar os nossos velhos, mãe. E que somos nós sem os nossos velhos, assim? Nós sabemos que não vão viver para sempre, custa-nos, mas sabemos que, se tudo correr na ordem natural, morrerão e nós estaremos vivos para essa dor. Mas morrer assim? Tantos? De um bicho?

Há um tipo na América e mais outros por aí que até dizem que os velhos devem morrer para salvar a economia. Que bichos seríamos se deixássemos morrer as pessoas que nos deram toda a sua vida, assim, como farrapos de dor? A eutanásia não é isto, não é para isto, não é para o sorriso da minha mãe enquanto ela quiser sorrir. Estivesse ela a sofrer desnecessariamente, aí sim. Mas que bichos seríamos nós se deixássemos morrer os nossos velhos, deixássemos morrer quem ainda reza e ri, que dança e canta, velhos que trazem o mar fundo na voz? Mas disto tudo não te falo, mãe.

Ó mar alto, ó mar alto
ó mar alto sem ter fundo,
mais vale andar no mar alto
do que andar nas bocas do mundo.

À mesma quadra, a minha mãe repete sempre o mesmo sorriso, uma espécie de onda que rebenta na rocha, uma alegria de criança já velha feliz por a memória, quase toda desaparecida, ainda dar para quatro versos. Quase me alegro, mãe, de nem saberes o que se passa; se te disserem, mais logo já nem te lembras. Poupamos-te esse sofrimento. Dizem que anda aí uma gripe. Sim, mãe, deixa, nem penses nisso, anda aí uma gripe, vê lá se tens cautela com as correntes de ar.

Houvesse uma reza para te proteger, mãe, são 217 quilómetros que eu não posso percorrer. Estou fechado em Lisboa; escolhi a dor da distância. Sei-te segura com os nossos, mas escolhi a dor da distância. Que o Alentejo te proteja, minha mãe, que eu não posso. Só te posso proteger estando longe, longe de ti. São 217 quilómetros, mãe. Já estamos habituados. Pudesse a minha voz subir a qualquer lado que nos salvasse. Uma reza, mãe, uma reza.

Jesus que é o Santo nome de Jesus,
onde está o Santo nome de Jesus não entra mal nenhum.

Espero a ciência, mãe, mas por ti, acredito em tudo. Por este país fora, por este mundo fora, não estou sozinho; somos milhões, todos como eu agora, perto ou longe, a olhar ao longe para a nossa mãe, o nosso pai, os nosso velhos, a olhar para os nossos filhos, a olhar para os nossos, a temer o mesmo, a rezar em silêncio, a tremer no indizível. Impotentes. 

Que podemos nós fazer, mãe, senão fechar-te a sete chaves para que nenhum mal te aconteça? Que posso eu fazer, mãe, senão ficar longe de ti, para que nenhum mal te aconteça? Que posso eu fazer, senão escrever, rezar nas palavras, por ti e por todos os velhos das nossas vidas? Que seria eu hoje sem a minha avó Florinda, sem as minhas tias Vitórias, sem os meus tios e tias, sem o ti Joaquim e a ti Georgina, sem a dona Maria Bárbara e sem a dona Ofélia, sem a dona Maria Fernanda e sem a ti Alzira, sem a tia Maria Perpétua — e tantos e tantos?

Que seria eu hoje sem todos os meus velhos que, na minha terra e tudo à volta, eram meus tios, meus ti? Que será dos nossos pequenos sem tantos dos nossos velhos? E que será de ti se te morrerem na imprevidência os teus pais, os teus avós, os teus?

Que a minha distância te proteja, mãe. Que eu fechar-me em casa nos proteja, mãe. Que o meu amor te proteja, mãe.

Guarda-te, porque eu preciso que me guardes. Espera por mim, que temos mais fotografias para fazer, sempre a mesma, que seja sempre a mesma. 

Tenho os olhos na última fotografia que te tirei, mãe. Ponho-as sempre no Facebook. Os meus amigos gostam muito das tuas fotografias. Deve ser porque vêem amor, sentem amor, e esse amor prolonga-se para lá de nós, mãe, vai pelo mundo, vai até à mãe deles, ao pai, a todos os que amam. Vai até à imperiosa e vital necessidade de protegermos os que amamos. Porque sem isso não somos humanos, não somos nada.

Olho para a nossa última foto, mãe. Eu sei que virão mais, mas nesta há um poeminha para ti. Diz:

Há lá maior alegria que uma pessoa dizer
— Mãe
e ouvir
— Diz, filho.

Espera por mim, mãe.

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