A solidão dos que juntam multidões

Esta é a hora de, em nome das equipas que lidero e que hoje aqui me outorgo representar, exigir que o Governo tome medidas eficazes e a longo prazo que acudam de forma inequívoca àqueles que enfrentam já seríssimas dificuldades.

O impacto da covid-19 na área do espectáculo é devastador. Sendo que a função primária de todos os que estão ligados a esta indústria é aglomerar multidões, encher recintos grandes e pequenos, festas, feiras, teatros, festivais, convenções, eventos de toda a ordem, adivinha-se uma tragédia surda a abater-se sobre dezenas de milhares de profissionais e suas famílias. Se não forem tomadas de imediato medidas que protejam aqueles que, nos bastidores, levam à cena a nobreza da cultura, agregam o país, o encantam e iluminam, o impacto humano sobre esta miríade de trabalhadores invisíveis, muitas vezes a recibos verdes e sem qualquer tipo de retaguarda financeira, será tremendo. Há já muita angústia. Não tardará a fome e o desespero. 

E a questão explica-se sumariamente: todas as actividades ligadas directamente ao espectáculo e cuja subsistência se alicerça em exclusivo, repito, na capacidade de aglutinar multidões, tiveram uma paragem de facturação de 100%. Mais: uma vez retomada a normalidade das actividades económicas – que, espera-se, seja em breve –, a percepção colectiva do risco não levará de imediato o público a regressar a uma sala de teatro ou a um festival. O jugo psicológico manter-se-á muito para além de ultrapassada a primeira e segunda vaga da covid-19. Nem a restauração ou a hotelaria, apesar do profundíssimo impacto que sofreram e com tanto em comum com estoutro sector, terá tal ordem de perdas. Para quem trabalha nas indústrias de palco, artístico ou de entretenimento, o cenário é o pior possível: todos os espectáculos sem excepção foram cancelados ou adiados e não há, compreensivamente, qualquer contratação a acontecer até ao inicio de 2021, sendo que, por esta altura, já o calendário do próximo ano deveria contar com bastante actividade. Desde que no início de Março estalou a pandemia, a facturação é nula e as marcações para os próximos dez meses, talvez mais, inexistentes.

Quando parto em digressão, e dependendo da dimensão do espectáculo em causa, a minha equipa pode ser composta, entre músicos e técnicos, por 15 a 25 membros. É exclusivamente em nome deles, pela abnegação incansável com que abraçam a profissão que têm, pela sua humildade e dedicação, porque representam outros tantos milhares neste momento em genuína agonia, pela incerteza lançada sobre as suas famílias, pela incógnita de como irão pagar as contas básicas à sua subsistência, que solicito ao Governo o olhar humano que lhe tenho reconhecido para sectores igualmente desprotegidos.

Já flagelados pelo fim das vendas de discos em formato físico, pela exploração de publicidade nas plataformas digitais cujas receitas para os autores são insignificantes, pelo uso abusivo e gratuito dos conteúdos que conjuntamente criam, músicos e técnicos vêem-se agora a braços com a obrigatoriedade da inacção total, crise que se adivinha ainda mais trágica que a de 2008. 

Não me lembro de ver a área da Música reclamar fosse o que fosse do Estado apesar de ser esta a primeira a marcar presença, individual ou colectiva, em milhares de eventos solidários: da simples compra de uma ambulância aos incêndios em Pedrógão, nunca faltou prontidão à classe. Ou por orgulho, ou para não sobrecarregar uma já hiper-solicitada máquina estatal, ou porque sempre foi uma classe absolutamente autónoma, os músicos sabem que nesta sua auto-suficiência assenta a liberdade criativa que os conecta com os seus públicos. Nada dita mais a independência artística do que a distância para com o Poder. Mas esta é a hora de, em nome das equipas que lidero e que hoje aqui me outorgo representar, exigir que o Governo tome medidas eficazes e a longo prazo que acudam de forma inequívoca àqueles que enfrentam já seríssimas dificuldades.

As comitivas necessárias para levar à cena qualquer espectáculo são factores dinâmicos de criação de riqueza. Elas integram músicos, actores, bailarinos, técnicos de som, luz e vídeo, roadies, encenadores, directores de palco, maquinistas, motoristas, produtores, promotores, entre dezenas de outros profissionais que hoje, e sem fim à vista, têm as suas vidas adiadas. Para os cofres do Estado contribuem directa e indirectamente com a vastidão das mais valias fiscais e laborais decorrentes da economia real que espoletam: empresas de som e luz, de palcos, tendas, bancadas, bilhética, restauração, hotelaria, agências de viagens, de transportes, rent-a-car, de catering, de design, marketing, branding, imprensa, equipas de produção, comunicação, de contabilidade, agências de artistas, saneamento, vedação, construção, fornecedores de camarins, geradores, instalações sanitárias encontram-se entre algumas das actividades que o sector do espectáculo estimula. 

Em 2018 realizaram-se 311 festivais de música que mobilizaram três milhões de espectadores, aos quais se podem somar milhares de eventos em praças, festas populares, terreiros, bailes e celebrações que, além de tudo, servem para que o país nunca mergulhe na penumbra amarga da tristeza. Os nossos clientes são este imenso público que vive no país mas também o que anda pelo país, os que correm atrás dos seus artistas e usam as ofertas locais, os que provam a sua gastronomia e se alojam em hotéis, casas de turismo de habitação, de turismo rural, os que usam os parques de campismo e circulam pelas nossas estradas dinamizando pujantemente a economia regional e nacional. São dezenas de milhar os postos de trabalho que esta indústria gera. Mas não é possível contabilizar o valor do serviço prestado à comunidade, ao país, à sua imagem, à sua auto-estima. 

Nada disto seria possível sem a imensa massa anónima para a qual venho hoje requerer atenção. Não são autores que se possam agora fazer ressarcir dos seus direitos, nem micro-empresários que possam recorrer às linhas de crédito disponibilizadas, nem produtores de conteúdos que possam agora disponibilizar e monetizar. São operários do sector, invisíveis e silenciosos mas fundamentais para que músicos como eu possam ter a visibilidade que fomos adquirindo. Sem eles, os nossos espectáculos seriam uma negridão em cima de uma caixa de cartão. Eles fazem com que eu seja ouvido. Está na hora de usar o que me construíram para que sejam eles também escutados.

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