Autarquias reinventam-se e reforçam apoios para vencer a pandemia

Entregam alimentos e medicamentos em casa, dão apoio psicológico por telefone, mantêm as ruas limpas. Criam hospitais de campanha, centros de rastreio e plataformas digitais. Autarquias reorganizaram-se para responder ao coronavírus – e algumas já pensam como resistir depois

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Nuno Ferreira Santos
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Quando Juliana Bastos de Oliveira ouviu falar da iniciativa que a Câmara da Covilhã burilava, voluntariou-se imediatamente. Mestre em Psicologia Clínica e da Saúde, antevia com clareza a dificuldade da população em lidar com tempos de pandemia. Incerteza, ansiedade, medo – o cocktail de sentimentos pode ser explosivo. E a criação de uma linha de apoio psicológico era, por isso, uma carta importante num rol de medidas que um município pode tomar por estes dias. Ela ofereceu ajuda para, ao telefone, tentar “acalmar e intervir neste momento de crise” – pensando já no “pós-crise”, que se adivinha complexo também.

O município da Covilhã não é o único a fazê-lo. Um pouco por todo o país, autarcas readaptam práticas, criam novas respostas, aproximam-se mais do que nunca dos cidadãos. Para alguns, os gastos subiram, ao mesmo tempo que as receitas caíram. E alguns já discutem como resistirão depois da tempestade.

A Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP), órgão representativo das autarquias, ainda não chegou a esse debate. Não por essa não ser uma preocupação, disse ao PÚBLICO fonte desta associação, mas porque o foco está agora no presente: e esse tem dado muito trabalho. Quando a Organização Mundial de Saúde declarou que vivíamos numa pandemia, a 11 de Março, a ANMP apresentou ao Governo uma série de propostas: o alargamento dos prazos para aprovar prestações de contas de 2019, a possibilidade de realizar reuniões por videoconferência e mesmo a suspensão de reuniões públicas foram transformadas em lei. A reunião do conselho directivo da ANMP marcada para esta semana foi adiada, mas na próxima, agendada para 10 de Abril, outras medidas deverão ser pensadas.

Até agora, choveram dúvidas de diversos municípios sobre questões práticas: como preparar o encerramento das escolas, onde garantir refeições a crianças de famílias mais carenciadas, como pôr em prática o teletrabalho para os trabalhadores dos municípios. A ANMP pôs a sua equipa jurídica e financeira a apoiar quem precisava, adiantou fonte desse órgão. E tem visto as autarquias, no âmbito da sua autonomia, construir uma rede de respostas.

A Câmara do Porto foi das primeiras a impor medidas mais restritivas ao convívio e a encerrar diversos espaços públicos. O executivo de Rui Moreira fez a ponte entre uma fábrica chinesa e hospitais nacionais e conseguiu promover a importação de 50 ventiladores, apoiou a produção máscaras e outro material de protecção, reforçou a limpeza das ruas, pôs mais camas no centro de acolhimento Joaquim Urbano, para pessoas em situação de sem-abrigo, suspendeu despejos, desactivou parquímetros, está a preparar uma isenção de taxas e licenças para o comércio, e promete, em breve, anunciar mais medidas de apoio a famílias e empresas.

Apesar de a “dívida zero” atingida em 2019 ser uma almofada confortável para tempos difíceis, a câmara acautela novos passos e quer que “as medidas a tomar tenham em conta os efeitos reais da crise que ainda não são claros”. Para isso, a quebra de receita terá de ser “bem estimada”, algo que ainda não se consegue fazer nesta altura. “Apenas com o decorrer de mais algum tempo será possível fechar o pacote de medidas em estudo que não devem ser precipitadas e hipotecar, por falta de receita, outras que venham a tornar-se mais prementes”, explica o gabinete de comunicação. Neste momento, por exemplo, os serviços municipais estão a estimar qual a poupança provocada pelo cancelamento de eventos desportivos, concertos, teatros, museus e galeria municipal para depois “alocar essa verba ao estímulo à actividade económica e apoio às famílias”.

Em Lisboa, a última semana foi de aceleração de respostas, com Fernando Medina a aprovar 15 medidas de apoio a famílias, instituições e empresas. O Fundo de Emergência Social da capital, até agora dotado de apenas 1 milhão de euros, passou a ter 25 milhões para distribuir por famílias e instituições sociais. Dentro deste fundo foi criado ainda um apoio especial para quem precisar de adquirir equipamentos, bens ou serviços para combater a pandemia​”.

Na capital, as rendas da habitação social foram suspensas até 30 de Junho, podendo o valor em dívida ser pago nos 18 meses seguintes. Já estabelecimentos comerciais instalados em prédios municipais e também clubes, colectividades e instituições sociais, desportivas, culturais e recreativas têm uma isenção total do pagamento. Suspensas ficam também a cobrança de taxas de ocupação do espaço público (com excepção para bancos, instituições de crédito e seguradoras), a aquisição regular de produtos frescos aos habituais vendedores das feiras suspensas, a criação de um gabinete de apoio às micro, pequenas e médias empresas e a criação de uma plataforma para pôr em contacto as startups lisboetas com instituições, municípios e outras empresas.

A ajuda está no terreno um pouco por todo o país, com modelos que se replicam. Para os mais idosos ou carenciados, muitas autarquias – através das juntas de freguesia ou não – criaram serviços de entrega de alimentos, refeições e medicamentos ao domicílio, ajudando a população a cumprir o seu dever especial de protecção e a evitar saídas de casa. Os interessados devem contactar o seu município, através de telefone ou Internet, para perceber como se processa o serviço. As ofertas vão crescendo – há também vizinhos, associações ou IPSS a oferecerem essa ajuda – e há quem tenha pensado em organizar essa rede. Em Lisboa, os interessados podem inscrever-se no portal redesolidaria.pt e perceber qual a melhor solução para si. Entre as tarefas cumpridas por esta rede está também o passeio de animais domésticos e prevenção de violência doméstica.

Ouvir e aconselhar

O apoio psicológico tornou-se ferramenta fundamental em cenário de incerteza e várias cidades anteviram isso. Autarquias como Matosinhos, Lisboa, Sesimbra, Santa Maria da Feira ou Famalicão são apenas algumas das que criaram linhas telefónicas para dar esse apoio à distância. Juliana Bastos de Oliveira atende o telefone da Câmara da Covilhã e procura dar aos cidadãos estratégias para lidar com o stress, frustração e ansiedade normais nestes dias. “Manter as rotinas é fundamental”, aconselha. “Sair da cama, tomar banho, vestir-se, fazer as refeições às horas habituais, falar com os vizinhos à varanda, explorar as tecnologias” e também “arrumar gavetas, mudar a decoração, montar uma tenda no quintal para os miúdos”. A imaginação conta mais do que nunca, com a “gestão de tempo” como parte da fórmula para manter a sanidade, aponta a psicóloga. No meio da mudança, há um pensamento que pode ajudar a relativizar: “Muitos de nós queixamo-nos sempre da falta de tempo para nós e para os filhos. Nesse sentido, é uma oportunidade”, aponta, deixando fora desta equação quem está em teletrabalho e pode ver-se, por estes dias, assoberbado de tarefas.

Entre a quase sempre mais difícil missão de fazer o trabalho a partir de casa, muitos pais assumem outros “trabalhos”: passaram a limpar a casa com mais rigor e frequência, a cozinhar mais vezes, a perder mais tempo nas filas das compras, a dar aulas aos filhos. Em Gondomar, onde há 16.800 alunos, entre ensino básico e secundário, a câmara tentou atenuar desigualdades entre as crianças: “Sentimos que muitas não tinham acesso a meios informáticos e não podiam ter aulas”, comenta o autarca Marco Martins. Por isso, os 800 tablets doados a agrupamentos escolares foram distribuídos por alguns desses menores. Na Trofa, a autarquia pôs em funcionamento a plataforma educativa Trofa+ para “apoiar alunos, pais e professores” e “minimizar o impacto negativo desta pausa lectiva forçada”. E na Mealhada as crianças sem computador e acesso à internet recebem em casa os trabalhos de casa. E porque o entretenimento é também importante, a rede BLX conta (no Facebook e Youtube) uma história por dia aos mais pequenos, enquanto a Biblioteca Municipal do Porto ofereceu aos associados acesso à videoteca, com cinema documental de festivais europeus.

Uma espécie de SNS24

A plataforma P5, iniciativa da Escola de Medicina da Universidade do Minho, tinha nascido no final de 2019 como ferramenta de saúde preventiva e avaliador de sintomas. Nas últimas semanas, o foco passou a ser a covid-19 e o site transformou-se numa “espécie de SNS24”, explica a médica Marina Gonçalves. Em coisa de meia hora, a ideia ganhou pernas e 200 alunos voluntariaram-se para participar. Quem entra no site tem de preencher um questionário com os seus dados e pode colocar dúvidas ou explicar os seus sintomas. A partir daí, e através de inteligência artificial, o programa faz um relatório que chega ao pessoal clínico. Caso seja preciso, as pessoas podem aceder por videoconferência a consultas de psiquiatria ou psicologia (serviço pago). Até agora, receberam 320 pedidos de ajuda no questionário online e 20 pedidos por e-mail. Os 241 psiquiatras prontos a prestar auxílio à comunidade médica já fizeram 32 consultas – e a expectativa é que os números cresçam rapidamente. E para a comunidade académica e profissionais de saúde o apoio psicológico é gratuito. 

As autarquias fortalecem as suas respostas e complementam medidas do Estado. Algumas apoiaram a criação de centros de rastreio ou hospitais de campanha. Outras reforçaram a limpeza das ruas, tornaram os transportes gratuitos, incentivaram a transformação de hotéis e alojamentos locais em “casas” para profissionais de saúde, suspenderam o pagamento de rendas sociais, isentaram comerciantes do pagamento de taxas e fizeram descontos nas contas da água. Com os serviços das câmaras quase todos fechados ou em teletrabalho, os munícipes podem e devem, ainda assim, contactar as câmaras ou juntas de freguesia quando precisam de apoio. 

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