Um campo de “refugiados” às portas de Beja

Cerca de 300 pessoas da comunidade cigana de Beja está concentrada numa área com cerca de meio hectare sem acesso a meios de higiene básicos teme o contágio por Covid-19.

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Enric Vives-Rubio

Pior que a chuva, a lama e o frio no Inverno ou o calor e o pó no Verão. Pior que a falta de água, a ausência de condições de higiene e a partilha do espaço com cobras e ratos. Pior que tudo isto é o medo, o pânico que já se abateu sobre as famílias que habitam o bairro das Pedreiras em Beja, que antevêem a chegada do coronavírus às barracas e casas superpovoadas que formam a mais numerosa e concentrada comunidade cigana do país.

Nesta quarta-feira, as famílias ciganas recompunham com tábuas, toldos plásticos e todo o tipo de material que contribuísse para colocar de pé as barracas que sofreram danos causados pelo mau tempo que se registou em Beja no final da última semana. Mas no meio da azáfama, o medo que o vírus afecte os cerca de 800 adultos que vivem no bairro preenche todas as conversas e preocupações reveladoras do pânico que o “vírus desgraçado” está a provocar.

O problema maior reside na inexistência de condições que assegurem os actos de higiene que estão a ser aconselhados à população. Um factor elementar impede a sua prática: o acesso à água. Cerca de 300 pessoas que residem em barracas dispõem de uma única bica colocada a uma distância de 100 metros do aglomerado. “Os moços são lavados mas não conseguimos evitar que se sujem na terra”, descreve ao PÚBLICO, Ofélia Barão, 28 anos e mãe de três filhos, dando conta da impossibilidade em manter “tanta criança sossegada dentro das barracas, onde os colchões onde dormem alternam com o espaço onde fazem lume para fazer a comida, os utensílios de cozinha, roupas e cobertores, sem espaço para a intimidade e conforto mínimo.

A proximidade entre barracas merece-lhe um comentário: “Estamos nas casas uns dos outros”. Nestas condições, o isolamento social é uma impossibilidade que tem associado o receio do contágio.

“Estamos todos em casa por causa do vírus”, refere João Agostinho da Silva, conhecido por Xau. Diz que a comunidade reclama, há semanas, a desinfecção das casas (no bairro das Pedreiras existe um núcleo de barracas e outro em alvenaria) mas “ninguém responde”. Admitindo que os serviços municipais não tenham pessoas para a tarefa, a comunidade já se disponibilizou para o fazer. “Mas não sabemos como nem que coisas se podem utilizar para matar o vírus”, adianta

Agostinho da Silva diz saber a ameaça que paira sobre a comunidade: “Se há um que apanhe a doença, apanhamos todos”. É comum esta preocupação a ponto de “até os próprios ciganos quererem sair do bairro”, criticando as autoridades municipais e de saúde: “Somos 800 pessoas abandonadas à sua sorte.”

Nos arredores da cidade de Beja, num sítio ermo onde as necessidades fisiológicas são feitas e deixadas a céu aberto, a comunidade cigana tem sido acompanhada pelo presidente da Associação de Mediadores Ciganos (AMC) Prudêncio Canhoto, que se insurge contra a falta de apoios e de esclarecimento. “Ninguém diz nada e ninguém ajuda a comunidade cigana”, queixa-se o dirigente da AMC que diz já ter alertado as autoridades para o problema, dando conta que “as pessoas estão em pânico”. Quanto a apoios: “Nada! Nadinha!”, acentua, lamentando que “nem os técnicos da Protecção Civil se deslocaram ao bairro em acções de sensibilização ou de esclarecimento. Não há alertas sequer.”

Além disso, acontece com a comunidade cigana o que acontece de um modo geral. “As pessoas querem comprar frascos de álcool, luvas e máscaras mas não encontram em lado nenhum, nem estes são fornecidos à comunidade que é um grupo de alto risco, pelo menos os que estão nas barracas”acentua o presidente da AMC, realçando um pormenor significativo: O bairro das Pedreiras “é a maior concentração de ciganos a nível nacional.” Noutros locais do país existirá um maior número de ciganos mas estão alojados em bairros juntamente com não ciganos.

Só em idade escolar o bairro tem mais de uma centena de crianças, fora as que estão no escalão etário até aos seis anos. Cerca de 60 são adolescentes entre os 15 e os 18 anos.

Reagindo às críticas formuladas tanto por moradores como pelo presidente do AMC, Paulo Arsénio, presidente da Câmara de Beja, referiu ao PÚBLICO que as crianças ciganas receberam informação nas escolas sobre actos de higiene. O problema é que, perante a ameaça de contágio, “os pais que tinham medo da covid-19 não permitiram que fossem à escola.”

Perante a ausência de informações prestadas ao bairro, o autarca sugere agora: “Como não há condições” para manter o distanciamento de dois metros, “sempre que saiam de uma barraca não devem aproximar-se de outras famílias.”

Problema maior está nas crianças: quem é que as vai manter sossegadas no interior de barracas? Paulo Arsénio, não vislumbra solução.

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