Habitação e covid-19: carta aberta

Fundada em fevereiro de 2020, a Rede H – Rede Nacional de Estudos sobre Habitação reúne cerca de 60 pessoas, entre académicos/as, ativistas e outros atores da sociedade civil, unidas pelo interesse no estudo do tema da habitação. Esta carta aberta marca o início de um percurso de reflexão e participação ativa no debate sobre habitação em Portugal durante e depois da pandemia covid-19. Está ainda em curso a preparação de um documento mais detalhado, em que iremos aprofundar ideias e propostas, considerando um prazo temporal mais alargado.

As condições habitacionais são, em simultâneo, causa e consequência das desigualdades sociais. Em períodos de crise, os efeitos destas desigualdades agudizam-se. Sabemos que Portugal é um dos países europeus com maiores dificuldades no acesso a uma habitação condigna e onde, portanto, o impacto da covid-19 será mais profundo.

Em situações de confinamento em casa, as condições habitacionais tornam-se ainda mais importantes porque delas depende a qualidade de vida dos indivíduos e das famílias: quem viver em alojamentos sobrelotados enfrentará dificuldades acrescidas; quem estiver em situação de sem-abrigo ou viver num alojamento precário, como acampamentos ou construções abarracadas, por vezes sem água, eletricidade e saneamento básico, não poderá proteger-se do vírus. Com o abrandar da economia, mais famílias não conseguirão pagar as suas rendas ou prestações de crédito com a habitação e outros bens essenciais, como água, eletricidade e gás. O acesso à Internet e, por conseguinte, à informação, serão também fortemente condicionados.

Com esta carta aberta endereçada ao Governo, ao Parlamento e às demais entidades públicas, a Rede H – Rede Nacional de Estudos sobre Habitação, os seus integrantes e outras pessoas interessadas no tema da habitação exigem medidas extraordinárias que consideram necessárias à garantia da segurança e saúde das pessoas em situação de sem-abrigo ou de precariedade habitacional.

Entendemos que as medidas aprovadas até agora pelo Parlamento (como a suspensão dos despejos, dos efeitos das denúncias de contratos de arrendamento e da execução de hipotecas) e por algumas câmaras municipais (como a suspensão das desocupações do parque habitacional municipal) são positivas, mas ainda insuficientes face às necessidades de hoje.

Sob um elevado risco de incumprimento da Lei de Bases da Habitação e do Plano Nacional de Contingência COVID-19, bem como das várias circulares informativas provenientes da Direção-Geral da Saúde e do Ministério da Saúde, solicitamos o cumprimento imediato de um conjunto de medidas dirigidas à habitação, designadamente:

  1. Mobilizar os espaços disponíveis (indústria hoteleira, alojamento local, habitações que possam ser temporariamente cedidas) para suprir o cumprimento de autoisolamento e de quarentena com vista a evitar riscos para a saúde individual, familiar e pública. Esta utilização imediata, se necessário através de requisição como previsto na declaração de estado de emergência, deve beneficiar primeiramente pessoas em situação de sem-abrigo, famílias a viver em condições de precariedade habitacional extrema ou sobrelotação, vítimas de violência doméstica ou de género, trabalhadores rurais em situação de habitação precária e, se necessário, profissionais de saúde.
  2. Prorrogar automaticamente os contratos de arrendamento (habitacionais ou não) durante o período de emergência nacional, acrescido de período adequado para procura de nova habitação permanente e condigna, findo o mesmo.
  3. Prevenir o aumento dos encargos com a habitação, através da redução ou suspensão dos pagamentos das rendas e das prestações de crédito das famílias que sofram diminuição dos rendimentos.
  4. Proteger os pequenos proprietários cujas rendas constituem parte substancial da sua subsistência, com medidas de alívio fiscal e de apoio financeiro.
  5. Garantir medidas de proteção face ao risco de contágio com covid-19 aos trabalhadores da construção civil e prestadores de serviços domésticos e domiciliários.
  6. Garantir recursos e apoio para prevenir problemas de saúde mental decorrentes do isolamento, dando especial atenção aos grupos mais vulneráveis, como as pessoas portadoras de deficiência, idosos e crianças.
  7. Reforçar os instrumentos de proteção a situações de violência doméstica e de género.
  8. Garantir a criação de instrumentos de proteção pessoal, informações e acesso a testes ao covid-19 a todo o pessoal empregado ou voluntário no trabalho com sem-abrigo.
  9. Assegurar o acesso a equipamento informático e acesso à internet às famílias que não podem aceder a serviços como a aquisição de bens essenciais online, ensino à distância e outras informações.
  10. Garantir a permanência em Portugal, e o acesso a todas as medidas aplicáveis aqui mencionadas, aos imigrantes, aos refugiados e aos estrangeiros que aguardam decisão sobre requerimento de asilo e autorização de residência (ou não a possuem), na medida em que as suas condições de vida podem agravar-se substancialmente.

O desafio que enfrentamos exige medidas urgentes e extraordinárias: é inaceitável pensar que os sistemas residenciais e o mercado imobiliário retomem a situação pré-covid-19, que já era caraterizada por disfuncionalidades significativas e injustiças no acesso a uma habitação condigna, face à inexistência de inúmeros apartamentos e prédios abandonados.

A habitação é um direito fundamental, consagrado na Constituição da República Portuguesa. A defesa do direito à habitação é ainda mais relevante em momentos como este, em que todas as contradições e efeitos nefastos da mercantilização e financeirização do imobiliário se tornam mais explícitos. Não é possível defender o pleno direito à saúde sem garantir o direito à habitação. Neste momento tão difícil que atravessamos, pedimos que Governo, Parlamento, municípios e todos os atores da sociedade civil reconheçam que é imperativo que a habitação cumpra a função fundamental de proteção das pessoas e famílias.

Para mais informações sobre este documento e sobre a Rede H, contactar redehabitacaoh@gmail.com ou 961379236

Assinam esta carta a título individual:

Aitor Varea Oro, arquitecto
Alda Botelho Azevedo, demógrafa
Ana Catarina Ferreira, investigadora
Ana Estevens, geógrafa
Ana Rita Alves, antropóloga
Ana Silva Fernandes, arquitecta
André Carmo, geógrafo
Caterina Di Giovanni, arquitecta
Cristina Santinho, antropóloga
Daniel Malet Calvo, sociólogo
Eduardo Ascensão, geógrafo
Fílipa Serpa, arquitecta
Francielli Dalprá Cardoso, investigadora
Francisco Roque de Oliveira, geógrafo
Giovanni Allegretti, investigador
Gonçalo Antunes, geógrafo
Guya Accornero, professora auxiliar
Helena Amaro, advogada
Helena Roseta, arquitecta
Hugo Pinto, economista
Joana Pestana Lages, arquitecta
João Ferrão, geógrafo
Jorge Malheiros, geógrafo
José Alberto Rio Fernandes, geógrafo
José Reis, economista
Katielle Silva, geógrafa
Luciano Figueiredo, consultor imobiliário
Luís Carvalho, geógrafo
Luís Castro, activista e dirigente associativo
Luís Mendes, geógrafo
Marco Allegra, geógrafo
Maria João Neves, frequência em Engenharia do Ambiente
Maria Manuela da Fonte, arquitecta
Mariana Almeida, arquitecta
Mário Vale, geógrafo
Nuno Travasso, arquitecto
Paulo Miguel Madeira, geógrafo
Pedro Guimarães, geógrafo
Pedro R. P. Rodrigues, sociólogo
Rafael Pereira, arquitecto
Rita Silva, investigadora
Roberto Falanga, sociólogo
Romana Xerez, professora auxiliar
Rosa Arma, arquitecta
Sheila Holz, investigadora
Sílvia Jorge, arquitecta
Sílvia Leiria Viegas, arquitecta
Simone Tulumello, geógrafo
Sónia Alves, geógrafa
Tiago Carvalho, sociólogo

Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico

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