A pandemia do diesel

Já alguém se colocou a hipótese de que, se calhar, há mais que um inimigo e estamos a espadeirar contra o vírus porque não queremos combater também o diesel?

The Big Smoke: assim foi chamado o episódio de inversão de temperatura atmosférica (ITA) em Londres que, associado a um surto viral, causou a morte de 6000 pessoas e doenças respiratórias agudas em outras 100.000, no Inverno de 1952-53 (M. Bell et al, Environmental Health Perspectives, 112, 1: 6-8).

O fenómeno da ITA, em que a temperatura ao nível do solo fica mais baixa que na camada superior, actua como uma tampa que impede a dispersão de poluentes urbanos na atmosfera. Foi, desde o início da era industrial, a responsável pelos famosos nevoeiros londrinos. É também responsável pelos poluidíssimos nevoeiros de Wuhan (B. Liu et al, Atmospheric Pollution Research, 9: 156-165).

Em Janeiro deste ano, a Lombardia, o Piemonte e o Veneto foram afectados por uma ITA que levou o governo a impor fortes medidas de restrição à circulação de veículos a diesel, proibiu a queima de combustíveis domésticos e obrigou à redução da temperatura das casas. Em Milão, o nevoeiro ficou tão espesso e o ar tão inquinado pela poluição que se tornou notícia a invisibilidade da Madonnina na fachada sul do Duomo. Os níveis de poluição na região superavam em Janeiro os 50 microgramas de PM10 e PM2.5 por metro cúbico, situação que foi agravada por uma greve nos transportes ferroviários regionais.

As PM10 e e PM2.5 são partículas inaláveis com diâmetro inferior a 10 µm, conhecidas como “micro-partículas”. São, entre os vários poluentes atmosféricos, as que causam maior risco para a saúde porque penetram profundamente os pulmões e atingem os alvéolos pulmonares, causando não só perturbações graves no sistema respiratório como nos outros órgãos, dado que se infiltram na circulação sanguínea. Os principais causadores da sua formação na atmosfera são os chamados precursores gasosos, como o dióxido de enxofre e o óxido de nitrogénio. Este, conhecido também pelo seu acrónimo, NOx, é produzido pela queima deficientemente filtrada do diesel. Os seus efeitos na saúde pública são conhecidos: doenças respiratórias, diabetes, asma, doenças coronárias e neurológicas. Segundo a OMS, em 2015, pelo menos 38.000 pessoas morreram devido à inalação de NOx. Genericamente, as micro-partículas são responsáveis, ou co-responsáveis, pela morte de pelo menos 15.000 pessoas por ano na Europa.

Quando uma ITA, que impede a dispersão atmosférica das PM10 e das PM2.5, ocorre em simultâneo com um surto viral para o qual o corpo humano não tem imunidade, os seus efeitos são devastadores, sobretudo para quem sofre de alguma das doenças listadas acima.

Sem querer desvalorizar o risco pandémico da covid-19, é ainda assim de questionar a metáfora da “guerra” que permeia os discursos de líderes políticos e é propalada pela comunicação social. Declaram-se guerras contra um vírus, designado como “inimigo invisível”, fala-se em heroísmo dos cuidadores de saúde como se fossem soldados na primeira linha de uma frente de batalha, jorram promessas de que a guerra será ganha, busca-se a comunhão do povo em torno do Estado protector, exige-se obediência castrense aos cidadãos e famílias.

Duvido que a metáfora faça sentido, se queremos mesmo perceber o que está em causa, tanto social como sanitariamente. Mas suspendamos momentaneamente a descrença e aceitemo-la como retrato. Se estamos em guerra, devemos definir claramente o objectivo estratégico, identificar o inimigo e munirmo-nos de armas que o possam combater eficazmente. Já alguém se colocou a hipótese de que, se calhar, há mais que um inimigo e estamos a espadeirar contra o vírus porque não queremos combater também o diesel? Talvez assim consigamos explicar porque razão 24.981 italianos morreram com “gripe” no Inverno de 2016-17, por exemplo (A. Rosano et al, International Journal of Infectious Diseases, 88: 127–134).

Prof. Associado, ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa

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