O desacerto sino-americano

A América de Trump continua a girar à volta do seu umbigo e o mundo a girar cada vez mais sem a América. Usando as palavras do filósofo Confúcio: “De nada vale ajudar aqueles que não se ajudam a si próprios.”

As relações diplomáticas entre os Estados Unidos e a China – as duas principais economias do mundo – estão no ponto mais baixo dos últimos 30 anos. Em muitos sentidos, o conflito político faz-nos lembrar o ambiente de tensão que existiu na Guerra Fria. São duas potências com sistemas políticos antagónicos, com formas de estar no mundo diferentes que suscitam interpretações diferentes de acordo com determinados quadros ideológicos. A pandemia da covid-19 não trouxe tréguas à tensão comercial entre os dois países, antes tem servido para agudizar os discursos. Muita da crispação resulta do recente aproveitamento político da administração Trump no momento da crise pandémica, o que por si só é altamente reprovável. Não é altura para se fazerem ajustes de contas, é altura para se salvarem vidas.

O Presidente americano, de forma descuidada, tratou a covid-19 como um “vírus chinês”, acusando a China de ser lenta no tratamento da informação a transmitir ao mundo. A tendência alargou-se à comunicação social, tendo o Wall Street Journal tratado o país asiático como “o verdadeiro homem doente da Ásia”. Ao mesmo tempo, propagam-se teorias da conspiração, a levantar suspeitas sobre uma possível origem planificada da pandemia. Neste caso, seria uma tentativa de aniquilação do “outro” pela via biológica, não muito distante da estratégia de Pizarro contra o império Inca. As acusações incendiaram a diplomacia bilateral. De um lado, os chineses indiciam que a doença foi propositadamente levada para a China por militares americanos; por outro, os americanos, que o vírus foi preparado num laboratório e propagado na cidade de Wuhan. Entretanto, Pequim expulsa vários jornalistas americanos que faziam cobertura no país, e os Estados Unidos passam a exigir com regularidade identificação a repórteres chineses.

Várias considerações devem ser tomadas em relação a este cenário. Em primeiro lugar, não há qualquer evidência que o vírus tenha uma origem laboratorial, como comprova o conjunto inicial de contaminados no mercado de Wuhan. Estas teorias da conspiração servem o propósito de manchar a imagem da China no exterior, disseminada através das redes sociais. No final, ficam as representações distorcidas, sentimentos xenófobos e racistas. Claro que a China tem responsabilidades, a começar pelas condições de saúde dos seus mercados tradicionais, na forma descuidada como geriu a informação interna e as incertezas iniciais do ponto de vista político. Quando pouco se sabia sobre o novo coronavírus, foi da China que surgiu a ideia errada que não se propagava de pessoa para pessoa, que depois seria replicada em Portugal. Aliás, as críticas internas às falhas do governo custaram o cargo a Ma Guoqiang, secretário do partido em Wuhan.

Não fica bem aos Estados Unidos acusar explicitamente a China sobre a covid-19, quando nenhuma pandemia serviu alguma vez na história para acusar um ator internacional. Importa lembrar que a gripe pneumónica de 1918-19, erradamente conhecida por “gripe espanhola”, na verdade teve origem em Filadélfia, nos Estados Unidos. Foi uma das mais mortíferas entre as pandemias da história, tal como trata John Barry no seu livro The Great Influenza, nunca especificamente associada ao país originário como o seu responsável. Da mesma forma que a doença das “Vacas Loucas” não se propagou como uma doença inglesa. Também o HIV/sida não era associado a um país em concreto – independentemente da sua origem, foi um problema de saúde global.

O levantamento da questão dos direitos humanos em relação à China faz sentido, mas não neste momento, sobretudo quando a crítica incide nas medidas autoritárias na aplicação do recolher obrigatório. Todos os outros países estão a seguir regras austeras para travar a pandemia, um mal que sabemos necessário. Surgem também acusações na forma como os chineses têm dirigido a crise, quando a gestão de grandes catástrofes tem um nível de eficiência elevado neste país. Basta comparar a gestão chinesa do terramoto em Sichuan (2008) com a americana após o furacão Katrina (2005) para se tirarem conclusões.

Não deixando de ter uma quota de responsabilidade, a China é também uma vítima neste processo, que vê a sua imagem internacional beliscada, a economia afetada e a unidade política do país colocada em causa, entre outros desafios. Tirar aproveitamento político nesta altura é altamente reprovável, não trás nada de bom para o mundo, nem sequer para os Estados Unidos. O secretario do comércio, Wilbur Ross, chegou a sugerir que que o vírus poderia acelerar o regresso dos postos de trabalho para a América. Não será exatamente assim. Embora as cadeias de abastecimento possam sofrer alterações nos próximos anos, a economia global é interdependente. Não é fácil encontrar alternativas com a mesma qualidade logística da China, que produz ¼ dos bens manufaturados do mundo. Menos sentido faz antagonizar a China, quando foi precisamente este país asiático a ajudar os Estados Unidos na resolução da crise após falência do Lehman Brothers (2008). Na altura, Pequim não cedeu às pressões russas para explorar as vulnerabilidades americanas numa altura de dificuldade. Usando as palavras do filósofo Confúcio: “De nada vale ajudar aqueles que não se ajudam a si próprios.” A América de Trump continua a girar à volta do seu umbigo, o mundo a girar cada vez mais sem a América.

Nota: O texto vincula apenas a opinião do autor

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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