O vírus e a importância da ciência

Se há progresso na História ele concentra-se sobretudo na evolução da ciência e nas suas decorrentes aplicações no domínio da técnica.

1. Eis-nos, nestes dias de inesperada angústia, condenados a uma estranha reclusão interior. Confinados ao reduto das nossas casas vivemos a experiência da contracção do espaço e da dilatação do tempo. Tudo ao contrário do que caracterizava o mundo contemporâneo. Agora já não temos aviões para apanhar, cidades distantes para visitar, recônditos povos para conhecer. Nem sequer podemos atravessar a rua, a rua que, na verdade, talvez nunca tenhamos atravessado. Sobra-nos o que mais nos faltava: o tempo. Tempo para divagar, tempo para pensar, tempo para imaginar. Quantas pequenas revoluções individuais não ocorrerão neste estado de suspensão temporária da realidade. Olhamos para trás e surge-nos, estranho, “o mundo de ontem “, para usar o título da célebre obra de Stefan Zweig. Como escrevia esta semana um jornalista do El País: “Afinal, éramos felizes e não sabíamos.”

Esta pandemia, a primeira verdadeiramente séria no tempo da globalização, não adquirirá as dimensões que caracterizaram as grandes pestes que assolaram a Europa em épocas anteriores. Não deixará, contudo, de provocar significativas devastações nos planos mental, político e económico. Como em todas as crises desta natureza, abundam por aí os profetas, as cassandras e os cartomantes. Na verdade, por muito que desagrade aos que se apressam em declarar a morte da globalização, o fim do modelo demo-liberal, o ressurgimento das soberanias nacionais, não estamos em condições de antecipar, com rigor, o que vai suceder no futuro. O mundo mudou, isso é certo. Não há, contudo, nenhuma verdade dialéctica, nenhuma antecipação causal que nos permita descrever aprioristicamente o que será sempre o resultado da extraordinária capacidade humana de reformulação dos imaginários colectivos.

Curiosamente, o que está na origem da transformação que se adivinha, seja ela em que sentido for, é uma aleatória mutação ocorrida nos confins da própria natureza, num vírus que a comunidade científica hesita ainda em classificar como uma forma de vida. Não deixa de ser algo paradoxal que em pleno período Antropoceno, isto é, o período em que supostamente o factor humano determina a evolução do planeta, toda a organização política, económica e social da humanidade seja posta em causa pela acção invisível de uma disrupção ocorrida no interior de um vírus. Este acontecimento reveste-se de grande interesse. Desde logo, questiona radicalmente as teses que apontavam para um excesso de antropocentrismo na relação do homem com a natureza. Afinal de contas, ainda estamos longe da plena concretização do projecto cartesiano de subjugação da natureza por parte do Homem. Talvez isto contribua para que se percebam duas coisas: como são exagerados certos fundamentalismos ecológicos e como é importante valorizar o conhecimento científico.     

Na verdade, todos temos hoje os olhos postos na comunidade científica internacional que está empenhada em desenvolver um medicamento antivírico e uma vacina que nos libertem deste enorme pesadelo. Isso significa um triunfo da razão humana, mesmo que esta manifeste nas presentes circunstâncias as debilidades que a caracterizam. Se há progresso na História ele concentra-se sobretudo na evolução da ciência e nas suas decorrentes aplicações no domínio da técnica. É certo que a ciência e a técnica não podem ser percebidas de forma absolutamente independente e precisam de ser integradas num projecto visando o reforço da autonomia do Homem. Seria dramático que o ser humano se libertasse da ditadura das forças da natureza para se entregar à autoridade de um modelo científico-tecnológico que escapasse à sua vontade. Sejamos, porém, claros – ainda estamos longe disso. O Homem subsiste, em grande parte, prisioneiro do mundo natural. Como agora se vê nesta crise que nos põe radicalmente em causa.

2. O Presidente da República proferiu na passada quarta-feira, a meu ver, o melhor discurso do seu mandato. Irritados com o excesso de selfies somos por vezes levados a desvalorizar a superior inteligência de Marcelo Rebelo de Sousa. O Presidente dos afectos revelou-se uma vez mais, num momento decisivo, o Presidente da razão política. Embora compreendendo aqueles que se pronunciaram contra a declaração do estado de emergência, rendi-me absolutamente aos argumentos presidenciais. Com extraordinária clareza Marcelo Rebelo de Sousa explicou ao país as vantagens do recurso a essa opção extrema. Não está em causa, como é óbvio que não poderia estar, qualquer ameaça ao funcionamento da nossa democracia. Pelo contrário, o que está em questão é a demonstração de que os regimes democráticos têm formas de enfrentar crises da natureza daquela que atravessamos.

O primeiro-ministro tem igualmente dado provas de grande serenidade na abordagem deste cataclismo que se abateu sobre o país. Resoluto e tranquilo, ignorando a tentação do discurso emocional e demagógico, tem-se revelado à altura das dramáticas circunstâncias que nos são dadas viver. Rui Rio merece também um elogio pela grandeza de que deu provas no discurso pronunciado na Assembleia da República. Temos por isso razões para estarmos satisfeitos com o comportamento dos nossos principais responsáveis políticos. Isso é muito importante nos tempos difíceis que estamos a atravessar.

3. Uma palavra especial para os médicos, enfermeiros e demais profissionais do sector da saúde. Este é um momento em que percebemos especialmente quanto lhes devemos. Aproveitemos a circunstância para percebermos quão importantes eles são todos os dias.    

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