Como a perda de biodiversidade tem impacto nos surtos de doenças infecciosas

Cientistas têm vindo a alertar que cada vez mais as doenças infecciosas humanas que surgiram nos animais estão ligadas à desflorestação e às alterações climáticas.

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Vista aérea de uma zona desflorestada na Amazónia Bruno Kelly/Reuters

Um coronavírus que passou dos animais para os humanos tem-se alastrado pelo mundo. Nos últimos tempos, também têm sido muitas as notícias sobre a perda de biodiversidade no mundo. Que impacto terá tido então a diminuição de biodiversidade na actual pandemia de covid-19? De acordo com estudos científicos publicados antes da pandemia, a desflorestação e a perda de habitats estão associadas ao aparecimento de doenças infecciosas humanas que surgiram nos animais.

A frequência de surtos de doenças tem aumentado. Uma investigação publicada em 2014 na revista científica Journal of the Royal Society Interface contabilizou 12.102 surtos de 215 doenças infecciosas humanas entre 1980 e 2013. Esses surtos estão associados a cerca de 44 milhões de casos individuais, que afectaram todos os países do mundo. O estudo sugeriu ainda que surtos que surgem de agentes patogénicos que passam dos animais para os humanos estão a aumentar.

Os Centros de Doenças Infecciosas dos EUA estimam mesmo que três quartos das novas doenças que infectam humanos surgiram em animais, como o ébola, o SARS (ambos terão vindo de morcegos), a gripe das aves, a MERS (ligada a camelos) e agora a covid-19 – que embora não se saiba ainda a origem, suspeita-se que esteja ligada a morcegos e a outro animal intermediário (já foi apontado o pangolim) e foi identificada pela primeira vez na cidade de Wuhan, na China. E podíamos continuar a nomear outras doenças humanas que começaram em animais, desde a febre de Lassa identificada pela primeira vez na Nigéria nos anos 60 ou a Nipah na Malásia.

Mas por que é que estas doenças têm aumentado? Num artigo no site do Fórum Económico Mundial assinado por John Scott, responsável de risco da companhia suíça de seguros Zurich Insurance Group, refere-se que os contributos desta subida incluem o elevado número de viagens pelo mundo, do comércio ou de áreas densamente povoadas. Mas destaca-se sobretudo o contributo da perda de biodiversidade.

“A desflorestação tem aumentado constantemente nas últimas duas décadas e está ligada a 31% dos surtos, como os vírus do ébola, do Zika e de Nipah”, escreve John Scott. “A desflorestação afasta os animais selvagens dos seus habitats naturais e aproxima-os das populações humanas, criando uma grande oportunidade para as doenças zoonóticas [que passam dos animais para os humanos].” O responsável de risco destaca ainda que as alterações climáticas fazem com que as populações se tenham de deslocar e que o movimento desses grupos (muitas vezes em condições muito precárias) aumenta a sua exposição a ameaças biológicas. Desta forma, haverá um crescimento da transmissão de doenças infecciosas, como de infecções respiratórias e da malária.

“Uma ameaça crescente”

Também em 2019, num estudo publicado na revista científica Trends in Parasitology, um grupo de cientistas da Universidade de Auburn (nos EUA) sugeria que os habitats degradados poderiam estimular processos de rápida evolução e diversificação de doenças, nomeadamente as que podiam passar de animais selvagens para humanos, como o ébola, o vírus do Nilo Ocidental e o vírus de Marburgo.

Já em 2008, um estudo na revista científica Nature revelava que se tinham identificado 335 doenças que tinham surgido entre 1960 e 2004 e que, pelo menos, 60% delas vinham de animais. Estas doenças infecciosas que surgem nos animais são “uma ameaça crescente e muito significativa para a saúde, a segurança e a economia globais”, alertou ao jornal britânico The Guardian Kate Jones, primeira autora desse estudo e investigadora da University College de Londres.

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Desflorestação na Indonésia para plantação de óleo de palma HOTLI SIMANJUNTAK/EPA

Nos últimos dias, a cientistas tem recebido muitos pedidos para falar sobre a relação entre a perda de biodiversidade e o surgimento de doenças infecciosas, contou ao PÚBLICO. Por isso, juntamente com outros colegas, compilou um conjunto de questões para os jornalistas. “Embora isso não seja fácil de quantificar, provas científicas sugerem que as doenças infecciosas estão a emergir a um ritmo crescente e que a maioria são doenças zoonóticas”, começam por explicar.

Muitas das causas estão precisamente ligadas ao impacto do humano no ambiente, desde a desflorestação, a conversão da terra para a agricultura ou a intensificação do uso do solo. “Estas mudanças levam a perdas da diversidade na vida selvagem e que as pessoas fiquem mais perto desse ambiente. Há algumas provas de que isso favorece os tipos de espécies selvagens que são mais eficazes a transmitir infecções para os humanos.” Isto facilita assim que novas doenças infecciosas cheguem aos centros urbanos e se desloquem rapidamente através de ligações aéreas.

Quanto ao contributo das alterações climáticas, Kate Jones e os colegas ligam esta questão à perda de biodiversidade e frisam que, por agora, há provas que sugerem que ecossistemas transformados pelo humano e com menor biodiversidade estão associadas ao aumento do risco de muitas doenças infecciosas. Mesmo assim, alertam que a relação directa entre as alterações climáticas e a passagem de agentes patogénicos de animais para humanos ainda está “pouco definida”.

“Não culpem os morcegos!”

Como o novo coronavírus pode ter tido origem em morcegos, Kate Jones também se viu na obrigação de apelar aos jornalistas: “Não culpem os morcegos! Isto é em grande parte devido ao comportamento humano. Estamos a mudar a transmissão das dinâmicas entre a vida selvagem e as pessoas ao converter paisagens e deslocar espécies domésticas como nunca aconteceu antes, expondo-nos a nós próprios a novos agentes patogénicos.” E alerta: “Estamos a movimentar a vida selvagem no mundo como nunca antes e a misturar espécies em mercados de animais selvagens – criando novos cocktails de vírus.”

Ricardo Rocha também pede para que não se diabolizem os morcegos, que muitas vezes estão associados a histórias de terror, ao Halloween ou até mesmo à morte. “Há muito a ideia de explorar essa vertente de medo”, nota o investigador de pós-doutoramento do Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos da Universidade do Porto, que estuda morcegos tropicais em Madagáscar e no Quénia. O cientista assinala mesmo que estes mamíferos são “extremamente importantes” para serviços nos ecossistemas. Em Madagáscar, por exemplo, consomem mosquitos que são vectores de malária. “Ao consumirem mosquitos podem estar a diminuir a transmissão de doenças associadas a eles”, diz, adiantando que podem ser supressores de pestes agrícolas. Também têm sido objecto de estudos do envelhecimento, cancro, de defesa contra doenças ou até mesmo de engenharia. 

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Morcego em Madagáscar Benedicte Kurzen/Reuters

Para Ricardo Rocha, as principais causas ligadas à possível transmissão de doenças zoonóticas pelos morcegos são a alteração do habitat e a expansão da fronteira agrícola e natural, o que leva à interacção de novas espécies e ao aumento da proximidade entre o homem e animais selvagens. Depois, há ainda a predação de morcegos para alimentar animais domésticos (como gatos) ou a sua venda em mercados de animais selvagens.

“Animais vendidos em mercados tendem a ser caçados em zonas de floresta profunda ou mesmo na fronteira de zonas agrícolas e naturais e não deveriam estar em contacto com o homem”, considera. Aí, são postos em contacto com outras espécies, o que pode influenciar a mistura de várias doenças. “Este cocktail de espécies que não tendem a estar em contacto pode levar à transmissão de doenças, que podem chegar ao humano. Além disso, são postos em condições stressantes, o que pode potenciar a virulência de vírus que podem ser nefastos para o homem.”

O que se pode fazer para minimizar todo este problema? Não continuar a destruir e degradar ambientes naturais, porque são “o nosso escudo contra zoonoses em zonas que nunca tivemos contacto”, aponta Ricardo Rocha. Deve-se ainda reduzir o tráfico de espécies e o consumo de carne, neste caso, de animais selvagens.

Também na edição desta semana da revista científica Science, Huabin Zhao, investigador da Universidade de Wuhan, refere que esta pandemia está a ameaçar os morcegos na China, que normalmente são associados lá à sorte e felicidade: “Enquanto a covid-19 se espalhava, as pessoas na China começaram a pedir que os morcegos que hibernavam perto das suas casas fossem expulsos.” O cientista acrescenta que isso pode levar a uma maior mortalidade destes mamíferos e até potenciar a disseminação de outros vírus. Além disso, caso se confirme, frisa que a covid-19 nem está ligada aos morcegos que hibernam nas cidades, mas sim a morcegos-de-ferradura, que hibernam em grutas e vivem longe dos centros urbanos.

“Não estou surpreendido”

Apesar de todos estes estudos já terem sido publicados e das declarações dos cientistas não serem propriamente novas, muitos de nós podemos não estar conscientes da ameaça das doenças infecciosas e isso tem uma justificação. Como salienta John Scott no seu artigo para o site do Fórum Económico Mundial, os impactos desses surtos na saúde humana têm sido minimizados devido aos avanços na medicina e nos sistemas de saúde pública. Mesmo assim, alerta: “Os últimos 20 anos de surtos de doenças podem ser vistos como uma série de catástrofes quase acidentais que levaram à complacência e não à crescente vigilância para controlar os surtos”, diz, acrescentando mesmo assim que a Organização Mundial da Saúde e a Aliança para Inovações de Prontidão para Epidemias têm feito de tudo para minimizar a situação.

Alguns escritores e cientistas têm falado da ligação entre a perda da biodiversidade causada pelos humanos, o surgimento de doenças infecciosas e de como não estão surpreendidos pelo que está a acontecer.

“Invadimos florestas tropicais e outras zonas selvagens que albergam tantas espécies de animais e plantas – e dentro dessas criaturas há tantos vírus desconhecidos”, escreveu David Quammen, autor do livro de 2012 Spillover: Animal Infections and the Next Pandemic (Disseminação: Infecções Animais e a Próxima Pandemia, numa tradução livre para português), num artigo para o jornal norte-americano The New York Times. “Cortamos árvores; matamos animais ou enjaulamo-los e enviamo-los para os mercados. Estamos a perturbar os ecossistemas e a mover os vírus dos seus hospedeiros naturais. Quando isso acontece, eles precisam de um novo hospedeiro. Muitas vezes, [esse hospedeiro] somos nós.”

Também o ecólogo de doenças Thomas Gillespie não ficou muito surpreendido: “Os agentes patogénicos não respeitam as fronteiras das espécies. Não estou surpreendido com o surto de coronavírus”, disse ao The Guardian o professor da Universidade de Emory, nos Estados Unidos. “A maioria dos agentes patogénicos ainda não foi descoberta. Estamos na ponta do icebergue.”

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