O coronavírus e o Rendimento Básico Incondicional

Pedimos ao Governo português que financie imediatamente um RBI de emergência, permitindo que todos, independentemente de seu status, vivam com dignidade.

Hoje enfrentamos duas ameaças − uma do vírus e a outra económica. A ameaça do vírus é, de certa forma, algo que podemos controlar: sabemos o que devemos fazer para reduzir ao máximo o risco de contágio, protegendo a nossa saúde e a dos outros cidadãos.

No entanto, a ameaça de insegurança económica é no mínimo tão preocupante como a primeira. Em particular, as perdas mensais na economia portuguesa podem chegar aos 4000 milhões. Além disso, no nosso caso, o facto de o turismo representar em receitas 8,3% PIB – isto em 2018 – pode ser dramático para estas empresas e trabalhadores. Muitos de nós, enquanto seguimos de maneira responsável os melhores conselhos médicos disponíveis, vamos ver drasticamente reduzidas as nossas capacidades de comprar comida e de pagarmos os alugueres das nossas casas e as contas associadas. Muitos de nós vamos ver reduzida a capacidade de conseguir pagar o custo económico das nossas necessidades básicas. Estamos preocupados com as nossas famílias, vizinhos e amigos, pois os apoios do Governo não conseguirão cobrir as circunstâncias únicas de todos. Precisamos, por isso, de responder de uma maneira económica às consequências económicas da pandemia.

Para garantir que todos possamos seguir com confiança as medidas de saúde pública exigidas por esta pandemia − cuidar de familiares doentes e de crianças, e prestar serviço aos que na nossa comunidade alargada estão em situação de maior vulnerabilidade −, pedimos ao Governo que institua um Rendimento Básico Incondicional (RBI) de emergência. Um RBI é um rendimento cuja quantia deve ser suficiente para garantir condições de vida decentes, pago em dinheiro a todos os cidadãos e de maneira incondicional, ou seja, sem ter em conta a situação financeira, patrimonial ou salarial (no caso de quem seja remunerado pelo trabalho) de todas as pessoas que o recebem. O RBI deve ser considerado um direito universal, individual, incondicional, e idealmente será de uma quantia suficientemente elevada para assegurar a cada cidadão uma existência digna e uma participação na sociedade que esteja livre de constrangimentos económicos que levem à exclusão.

Do nosso ponto de vista, o RBI é uma resposta sustentável à ameaça da insegurança económica. O que promete é uma segurança económica abaixo da qual ninguém pode cair: um cheque mensal, sem perguntas. Isso coloca dinheiro nos bolsos para pagar rendas, faturas, etc., quando muitos veem reduzido ou mesmo cancelado o seu rendimento, pois não podemos ignorar os despedimentos. Vamos ouvir falar muito estes dias sobre a redução das taxas de juros, injeções de dinheiro no mercado de ações e outros gestos de política económica do Governo, mas se quisermos sobreviver a esta pandemia como país, precisamos de fazer mais. O RBI deve ser visto como uma parte fundamental da outra metade da resposta do SNS português à covid-19.

A atual crise do coronavírus põe imediatamente em risco a frágil economia com a qual vivemos todos os dias. Muitos de nós não recebem o equivalente a um salário mínimo mensal, vivendo no limiar da pobreza. Outros ainda nem conseguem alcançar esse limiar. São cerca de dois milhões de pessoas em risco de pobreza ou exclusão social (quase 20% da população) e cerca de 1,7 milhões encontram-se em risco de pobreza monetária. O impacto da crise económica sobre os trabalhadores será enorme, não só nos assalariados, mas também nos trabalhadores independentes, cujo apoio da Segurança Social será de 1/3 do valor da remuneração registada como base de incidência contributiva no primeiro trimestre de 2020 – tendo como teto máximo pouco mais de 483 euros mensais. Por isso, para muitos casos poderá ser insuficiente, sobretudo se pensarmos na necessidade de continuar a pagar as contas, as rendas, e até no aumento destas despesas, uma vez que passaremos mais tempo em casa.

Também importa mencionar que os trabalhadores assalariados, com filhos com menos de 12 anos, receberão apenas cerca de 2/3 da sua remuneração de base, aproximadamente. Se nos relembrarmos que parte da retoma económica se baseou em baixos salários, o impacto da crise que vivemos hoje torna-se ainda mais premente. Como o recente parecer da EAPN - Rede Europeia Anti Pobreza em Portugal relembra, “o número de trabalhadores com salário mínimo passou de 9,4% em abril de 2010 para 25,6% em abril de 2018. Nesse mesmo ano, num contexto de crescimento do emprego, aumentou a proporção de trabalhadores pobres, passando de 9,7%, em 2017, para 10,8%”. Mais ainda, mesmo sem qualquer choque na economia, como o que poderemos viver com a crise de saúde pública atual, em 2019 “33% da população portuguesa não conseguia assegurar o pagamento imediato de uma despesa sem recorrer a empréstimo”, de acordo com a mesma fonte. Muitas destas pessoas, sobretudo aquelas com salários baixos, não podem suportar os encargos com perda de rendimento, pelo que não podem deixar de trabalhar. Esta situação coloca-as em risco a si e às suas famílias, não tendo possibilidade de ficar com os seus filhos.

À medida que as empresas fecham, os trabalhadores serão demitidos e a economia mundial desacelerará. Os portugueses precisam da segurança de um RBI para garantir que podem ficar em casa, auxiliando o esforço comum de diminuir a propagação mantendo, simultaneamente, a capacidade de pagar as contas. É por isso que comunidades atingidas em países de todo o mundo como Japão, Austrália, Hong Kong e Estados Unidos estão a começar a propor pagamentos em dinheiro como alívio económico direto para os seus cidadãos. Hong Kong já tomou a iniciativa mais clara nesse sentido, com um pagamento único a todos os cidadãos de HK $10.000 (cerca de 1140 euros) per capita. Mas esse pagamento tem uma dupla desvantagem. É uma quantidade muito pequena para oferecer uma capacidade sustentável de resistência e, ao mesmo tempo, é suficientemente elevado para arriscar que algumas pessoas gastem tudo de uma vez.

O coronavírus vem revelar a fragilidade da nossa sociedade. O apoio estatal às empresas e aos funcionários não é suficiente. De facto, ignora os estatutos, profissões e condições em que operam os trabalhadores mais precários, com estatutos fragmentados, desprovidos de qualquer continuidade de recursos e direitos relacionados, num contexto de uberização da economia. Todos aqueles que suportam o impacto das consequências das interrupções do trabalho fora dos estatutos assalariados, bem como todos aqueles que não têm emprego, também devem ser protegidos, custe o que custar. Considerando que existem muito mais milhões de pessoas em situações precárias em todo o mundo do que há uma década atrás, com rendimento incerto e flutuante e vivendo com dívidas insustentáveis, muitas ficarão ainda mais vulneráveis aos efeitos da desaceleração económica como a que estamos a viver. De acordo com os dados da EAPN, em Portugal, em 2018, “511 mil trabalhadores estavam em trabalho part-time e 879 mil trabalhadores tinham contratos de trabalho temporário”. Estes serão dos grupos de trabalhadores mais frágeis, cuja perda de rendimento ou até de trabalho pode ser a consequência da crise que vivemos atualmente. Dado que milhões de trabalhadores, dentro e fora do grupo dos precários, carecem de apoio para enfrentar até os regulares altos e baixos da vida, a crise económica terá fortes efeitos multiplicadores que levarão a mais despejos, mais falências e mais mortalidade, além da mortalidade associada à pandemia. Em suma, mais pessoas estarão em situação de precariedade e os efeitos desta condição serão agravados pelos elevados níveis de desigualdade de rendimentos.

Por isso, pedimos a introdução de um RBI o quanto antes, permitindo que todos, independentemente de seu status, vivam com dignidade. Financiar um RBI é garantir que todos temos mais escolhas, e que atuamos no sentido de mitigar as desigualdades de rendimentos e a má sorte, que nos afeta a todos de maneira desigual. Seja por motivos de saúde pública ou por um salário baixo, a quarentena voluntária em casa e a possibilidade de cuidar dos nossos filhos e idosos em segurança apenas existe para uma parte da população, enquanto outros, seja por obrigatoriedade da sua profissão, como os profissionais de saúde ou de segurança, ou pela sua condição salarial, como os trabalhadores de limpeza ou de comércio não essencial, não auferem do mesmo direito. O RBI seria uma forma de corrigir essa desigualdade. Sobretudo, um RBI de emergência para todos os residentes portugueses garantiria que possamos enfrentar esta crise com maior confiança.

Pedimos assim ao Governo português que financie imediatamente um RBI de emergência para cada adulto residente em Portugal até que a crise passe. O valor mensal pode ser ajustado para cima ou para baixo, dependendo da gravidade da recessão, como um estabilizador económico automático, para manter a procura agregada e fornecer mais resiliência a indivíduos, famílias e comunidades. O RBI poderia ser financiado da mesma forma que a flexibilização quantitativa foi financiada, embora o financiamento deva também ser associado a uma nova série de impostos ecológicos, começando com um imposto sobre o carbono. Quem estiver de acordo com esta proposta pode assinar a petição de um RBI europeu durante o período de isolamento social e/ou quarentena. Em Portugal, o partido Livre também lançou uma petição a favor de um RBI de emergência. É de salientar que no plano de emergência da esquerda europeia (o GUE/NGL, que inclui o BE e o PCP) são propostos 2000 euros por mês a cada Europeu enquanto durar a crise. No Reino Unido, a Royal Society of Arts propõe no seu plano de emergência um pagamento imediato único de £1500 seguido de pagamentos mensais adicionais de £450, combinados com acesso aos benefícios do crédito universal e com a cobertura dos custos de habitação.

Nestas circunstâncias, a primeira coisa que precisamos fazer é encontrar maneiras de fornecer às nossas economias e a nós mesmos muito mais capacidade de resistência social, económica e política. Governos e instituições globais não devem repetir os erros cometidos após a crise financeira de 2007-2008. Isso significa não cair na prática prejudicial de misturar políticas de austeridade − cortando os gastos públicos numa tentativa prolongada de reduzir os défices do orçamento, que enfraqueceram os serviços sociais e a infraestrutura e fizeram desaparecer bens comuns − com o chamado “alívio quantitativo” que consistia em os bancos centrais e o Banco Central Europeu injectarem centenas de biliões de dólares, euros e libras nos mercados, o qual sabemos hoje teve muito pouco impacto na economia real. Sabemos também que essas medidas não foram suficientes nem capazes de travar os aumentos na desigualdade de rendimentos, o desemprego estrutural (o qual apenas foi reduzido à custa do aumento dos contratos precários e de uma dependência considerável de setores como o turismo, no caso português), nem foram capazes de promover o crescimento económico que tanto prometiam. Podemos não querer crescimento económico, por razões ecológicas, mas o que certamente não queremos é mais desigualdade. Financiar o RBI é cuidar dos mais vulneráveis, garantindo-lhes uma “almofada de segurança” para fazer face às suas necessidades básicas, mas é também cuidar da nossa economia, procurando evitar uma redução drástica da procura (que adviria da quebra de rendimentos), garantindo que hoje e amanhã, após o momento que vivemos, não exista uma quebra no consumo que determine o colapsar de empresas que tanto dependem dele.

Além disso, um sistema de RBI ajudaria a combater a crise sanitária e a crise ecológica que define o nosso tempo. Isso permitiria que as pessoas pudessem de facto evitar ir aos locais de trabalho se achassem que isso seria um risco para elas e para os seus entes queridos, sem terem de contemplar as limitações do corte de rendimentos. Isso facilitaria a criação de um espírito de decrescimento ou frugalidade, algo que nós, indignados e com medo dos efeitos da crise climática global e da ameaça da extinção da biodiversidade, desejamos desesperadamente. Poderíamos aproveitar para desacelerar as nossas vidas, sem ficarmos “isolados”. Pelo menos podemos passar mais tempo com nossas famílias e nas nossas comunidades locais. O RBI de emergência constitui-se como uma medida de solidariedade, ou melhor, de reciprocidade generalizada, onde todos partilhamos o risco mas, sobretudo, a oportunidade e a capacidade de sobreviver a esta crise, em segurança, antes de mais, mas com esperança de que conseguiremos, nós e a economia, ultrapassar os impactos nefastos que possam surgir. Financiar o RBI é assumir como comunidade que garantimos os mesmos direitos e a mesma liberdade a todos. Uma escolha que é por isso fácil de fazer.

Roberto Merrill é Professor Auxiliar no Departamento de Filosofia da Universidade do Minho e investigador no Centro de Ética, Política e Sociedade da mesma universidade. Publicou em 2019 o livro Rendimento básico incondicional: uma defesa da liberdade, Almedina, ed. 70.

Guy Standing é Professor da Escola de Estudos Orientais e Africanos da Universidade de Londres. Os seus livros mais recentes incluem Battling Eight Giants: Basic Income Now (Bloomsbury, 2020); Plunder of the Commons: A Manifesto for Sharing Public Wealth (Penguin, 2019); Basic Income: And How We Can Make It Happen (Penguin, 2017); The Corruption of Capitalism: Why Rentiers Thrive and Work Does Not Pay (Biteback, 2016)

Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico

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