O charme discreto do autoritarismo

Decretar, hoje, o estado de emergência é um erro político que nos pode vir a custar caro.

Chamem a China, declarem o estado de emergência! O medo é, de facto, inimigo da democracia e adverso à razão. Decretar, hoje, o estado de emergência é um erro político que nos pode vir a custar caro.

Um erro porque é desnecessário para o que precisamos de fazer nesta fase. E se suspender parcial e transitoriamente a democracia é sempre lamentável, suspendê-la sem nada ganhar com isso é, no mínimo, irresponsável. Demonstra pouco apego às liberdades por banalização da sua dispensabilidade por tempo demasiado longo. Ou alguém acredita que a crise de saúde que vivemos se resolve nos 15 dias da sua duração? Não consigo pensar em melhor meio de degradar pacificamente a valorização da democracia e o valor da liberdade do que transformar a sua suspensão num ritual público quinzenal.

Um erro, ainda, porque dá aos cidadãos um sinal objetivamente mentiroso sobre a possibilidade de assim se ter mais meios e, portanto, mais resultados na luta contra a epidemia. O estado de emergência não é uma máquina do tempo. Não permite anular o contágio já ocorrido mas ainda invisível que decorre do tempo de incubação da doença, de quase duas semanas. Nem o ritmo exponencial de contágio no passado que só poderá começar a reduzir-se no futuro, mas sempre a partir de um patamar mais elevado do que o de hoje.

Porque hoje não há 448 infetados. Há milhares de infetados, dos quais 448 já com sintomas visíveis. Portanto, o número de infetados visíveis e de mortes vai subir, e muito, independentemente do que fizermos hoje, pelo menos até à altura de se colocar a necessidade de decidir sobre a primeira renovação do estado de emergência. E o que vai a maioria das pessoas pensar sobre isto? Que “eles”, os que mandam, nem com poderes reforçados conseguem fazer seja o que for. Incompetentes, irão clamar, a China é que sabe, reafirmarão então.

Uma reação compreensível, ainda que inaceitável, porque, entretanto, já estarão em pânico. Primeiro, pelo medo acrescido gerado pela própria proclamação do estado de emergência, nesta fase uma poderosa máquina simbólica de indução de pânico. Depois, porque, dia após dia, não irão ver os resultados que esperavam daquela proclamação. O desencontro entre expetativas e resultados não alimenta o pânico, eleva-o para patamares difíceis de controlar, exatamente na altura em que teremos de decidir sobre a renovação do estado de emergência. E assim se vai erodindo a democracia, sem golpes nem discursos inflamados. Apenas por medo.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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