“É preciso acabar com a ideia de que depois do divórcio o pai desaparece”

Muitas vezes as separações ou divórcios são “autênticas guerras” que levam ao “afastamento entre os filhos e um dos progenitores” — mais frequentemente do pai. Esta quinta-feira celebra-se o Dia do Pai.

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António Brandão e o filho Ricardo Nuno Ferreira Santos

Aos fins-de-semana, Ricardo joga futebol e os pais, António e Filipa, sentam-se juntos nas bancadas dos campos ou pavilhões a assistir. Faziam o mesmo quando a paixão do filho de dez anos era o Jiu-Jitsu e também não falham às datas importantes, como os aniversários, ou às reuniões na escola. À primeira vista pode parecer uma família tradicional, mas os pais de Ricardo estão separados há cerca de sete anos. “Nós damo-nos muito bem. A relação amorosa não funcionou e para nós o importante é mostrarmos ao Ricardo que os dois pais querem acompanhá-lo em tudo”, diz António Brandão, 42 anos.

Além de participarem nos eventos do filho, também é comum António, que não tem carro, aproveitar a boleia de Filipa para ir ver os jogos do filho que, habitualmente, acontecem nos arredores de Lisboa. Esta é uma dinâmica muito distante daquela que António receava durante a separação. “Nós decidimos que íamos ter guarda partilhada mas mesmo assim tinha medo de perder metade da vida do meu filho porque só o ia ver de semana a semana”, explica o ilustrador, que agora afirma nunca se sentir afastado, nem mesmo “nas semanas da mãe”. 

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Depois de sair da escola, António leva o filho, Ricardo, ao treino de futebol Nuno Ferreira Santos

Depois da separação, António arrendou uma casa nos Anjos, Lisboa, a uma rua de distância da casa de Filipa. Nas semanas em que Ricardo estava com a mãe, António ia várias vezes buscá-lo à escola ou passava por casa de Filipa para “dar um beijinho” ao filho. “Sempre tivemos bom senso, nunca entrámos em guerras a contar os minutos que cada um passava com o Ricardo”, explica. 

Há cerca de dois anos, Filipa mudou-se para outro bairro de Lisboa, o que complica estas visitas improvisadas durante a semana, mas, para enganar a distância, os pais partilham as novidades de Ricardo por mensagem. Ora Filipa envia fotografias do jovem na última exposição a que foram, ora António avisa que filme da Marvel Studios - os favoritos do filho - vão ver ao cinema. Também é costume ligarem um ao outro a pedir ajuda quando não conseguem ir buscar Ricardo à escola ou ao treino de futebol por terem de ficar até mais tarde no trabalho.

A família de Ricardo é um exemplo de como o divórcio ou a separação não têm de ser um caminho espinhoso para as crianças e para os pais. Segundo Inês Camacho, psicóloga clínica e educacional, é preciso destacar que há cada vez mais casos em que os pais separados conseguem preservar uma amizade e que ambos assumem um papel activo na educação dos filhos. “Quando isto acontece tem um impacto positivo no crescimento das crianças e jovens. Estes têm harmonia para estudar, fazer amigos, para terem segurança pessoal, auto-estima e conseguirem comunicar as suas emoções”, enumera a psicóloga. 

Ainda assim, a maioria dos casos que Inês Camacho conhece - através da prática clínica ou das investigações académicas que têm vindo a realizar - são separações pejadas de conflitos, algumas “autênticas guerras”, que várias vezes resultam “no afastamento entre os filhos e um dos progenitores, normalmente do pai”. Excluindo os casos de violência ou de efectivo abandono, a psicóloga considera que a principal causa deste afastamento é “as pessoas confundirem aquilo que era a vida de casal daquilo que é ser pai e mãe”, considera. 

“Muitas vezes há mágoa de uma das partes, há situações de vingança, um pai fala mal do outro, ofende o outro à frente dos filhos. Os problemas do casal reflectem-se na parentalidade e isso pode fazer com que a criança tenha receio em estar com um dos progenitores, ou fazê-la sentir-se culpada por gostar do pai ou da mãe”, exemplifica Inês Camacho. Por sua vez, a falta de contacto com um dos pais pode contribuir para que os jovens se tornem “mais inseguros, incapazes de dizerem o que realmente sentem com medo do abandono, incapazes de dizerem não a um comportamento sexual de risco, a uma situação de consumo, ou mesmo a certas coisas numa relação que não deviam aceitar”, explica a psicóloga. 

Depois do divórcio a família também se senta à mesa 

Às quartas-feiras, toda a família se junta na casa de Márcia Canelas, 23 anos, que vive com o namorado Fernando em Corroios, Seixal. Na mesa de jantar há lugar para a mãe Carla, o pai Anastácio, o padrasto Marco, o irmão Guilherme e a irmã mais nova Margarida, que é fruto do segundo casamento da mãe. Apesar de Carla Araújo e Anastácio Canelas estarem divorciados há cerca de oito anos, estes jantares acontecem regularmente, por norma à quarta-feira por ser a folga fixa do pai, que trabalha na restauração. “Não é preciso alguém fazer anos ou ser uma data especial para jantar, é uma coisa mesmo normal. Para nós é a coisa mais normal do mundo”, diz Anastácio, 54 anos.

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Guilherme Canelas guarda várias fotografias da família. Nesta está o jovem (à direita), a irmã Márcia (à esquerda) e o pai, Anastácio.

Quando se separaram, Carla ficou com a guarda total de Márcia e Guilherme, uma vez que os horários de trabalho de Anastácio o obrigam a sair do trabalho muito depois de o sol se pôr. Nos últimos anos há menos pais a optar pelo regime da guarda total, o que é uma boa notícia segundo a psicóloga Inês Camacho, que defende que a guarda partilhada (em que os filhos vivem alternadamente com cada um dos pais por períodos idênticos) deve ser a “escolha por defeito” por contribuir para que as crianças estejam próximas dos dois pais. Ainda assim assegura que cada família “é um mundo que tem de ser avaliado” e que, seja qual for o contexto, os pais devem concretizar aquilo “que é melhor para todos e principalmente para as crianças”, afirma a psicóloga. 

Mesmo sem ver Anastácio todos os dias, Márcia considera que o pai esteve presente “em todos os momentos” da sua vida. “É preciso acabar com a ideia de que depois do divórcio o pai desaparece”, afirma a jovem, que garante ter sido depois da separação que a relação com o pai floriu. “Nós antes víamo-nos todos os dias mas só depois é que passamos a falar mais, a conversar sobre os nossos dias e sobre nós”, explica. 

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Carla, Marco, Guilherme e Anastácio em cima. Fernando, Margarida e Márcia em baixo. Rui Gaudêncio

A irmã mais nova, Margarida, é fruto do segundo casamento da mãe e desde os seus primeiros passos que Márcia e Guilherme - bem como toda a família - se têm esforçado para que o pai seja visto por Margarida como “alguém da família” e não como “um desconhecido”. “Dizemos-lhe sempre que é o tio Anastácio”, acrescenta Márcia, que recorda as várias perguntas que a mistura de nomes espoletou no início. “Mana, estás a chamar pai ao tio? Então mas estás a falar do pai ou do tio?”, relembra Márcia os diálogos da irmã, que com os anos foram sendo cada vez mais raros. 

“No início pode ser sido confuso mas agora já é tudo normal e nós damo-nos muito bem”, completa Anastácio, que, quando o trabalho dá tréguas, vai várias vezes com Margarida à praia, comer um gelado e andar de autocarro. “A primeira vez que ela foi ao cinema foi comigo e com os irmãos”, orgulha-se Anastácio. “Ela é irmã dos meus filhos e nunca a ia pôr de parte”, acrescenta. Além de um tio, Margarida ganhou dois avós. “Nem eu nem o meu marido temos pais, por isso os pais de Anastácio são os únicos avós que ela conhece. Se houver uma actividade do dia dos avós na escola ela vai falar dos avós Canelas”, conta Carla Araújo, 49 anos. “Fica muitas vezes com eles, às vezes nas férias de Verão vai para casa dos avós em vez de ir para o colégio”, acrescenta. 

Cuidados a ter desde o primeiro dia 

Segundo Inês Camacho, os pais devem de ter alguns cuidados desde o momento em que decidem separar-se. O primeiro passo é afinarem, em conjunto, as directrizes que vão orientar a vida dos filhos. Depois devem falar com eles de forma “calma” e ouvir a sua opinião sobre as mudanças que se avizinham como, por exemplo, se preferem a guarda partilhada ou total. “As crianças devem ser ouvidas porque é a vida delas que muda”, justifica Inês Camacho, que acrescenta ser igualmente importante a conversa não terminar com um dos pais a sair imediatamente de casa, para não “causar medo nas crianças de não voltar a ver um dos pais”. 

No caso de Erica e Pedro não houve saídas de rompante nem discussões à frente da filha. Separaram-se em 2019, quando Camila tinha pouco mais de um ano, e mesmo depois da separação partilharam a mesma casa durante cerca de um mês. “A nossa filha era muito pequena e achámos que era importante ter um período para falar sobre as coisas que vinham por aí, os desafios, os limites, como é que íamos lidar com alguns assuntos, as regras básicas de cada um”, diz Erica Rodrigues, 32 anos, que trabalha na área da comunicação. 

Longe do pesadelo dos tribunais, esmiuçaram em conjunto as várias opiniões que tinham sobre o crescimento de Camila e escreveram um documento de mútuo acordo em relação às responsabilidades parentais - que meses depois foi aprovado pela Conservatória do Registo Civil de Lisboa. Este processo “rápido” e “sem conflitos” só foi possível por não terem deixado a relação “se arrastar até à exaustão”, defende Erica. “Até o podíamos ter feito porque convivíamos bem em termos logísticos, somos amigos, mas ao fazê-lo íamos guardar ressentimento e a nossa amizade e respeito iam mudar. Como temos de nos ver para o resto da vida, decidimos assumir que enquanto relação não dava mas que íamos trabalhar com a base de que somos pais da Camila”, acrescenta. 

Tal como aconteceu com Carla e Anastácio, Erica também tem a guarda total da filha devido aos turnos irregulares de Pedro, embora haja um número certo de noites que a filha dorme na casa do pai - dependendo do horário que Pedro tem em cada mês. “No início, a Camila não estava habituada a dormir sem mim então começou a passar só uma noite fora por semana, depois duas, e agora já esteve três noites fora. Enquanto não for possível fazer uma semana num lado outra noutro será esta a opção”, explica. 

Mesmo assim, durante a semana, Camila vê muitas vezes o pai na casa da mãe. Pedro tem uma cópia da chave de casa e é comum ir até lá dar banho à filha, levá-la ao parque e, quando o trabalho o permite, fica para jantar. Os pais de Camila também se encontram nas aulas de música, de natação, e quando têm folga aos fins-de-semana vão ao jardim ou à quinta pedagógica com a filha. Além do constante contacto, esforçam-se ainda para que exista uma harmonia entre a casa da mãe e do pai - por exemplo a filha tem o mesmo modelo de escova de dentes nas duas casas.

“Ela nem consegue bem distinguir o que é da mãe ou do pai, tanto pede a mim para ligar ao padrinho, que é o melhor amigo do pai, como pede ao pai para ligar para uma amiga minha. Para ela é tudo igual porque somos uma família. Ela nunca foi criada com essas barreiras, nem sabe que elas existem”, afirma Erica. Ainda assim, há espaço para que cada um preserve “a sua forma de fazer as coisas sem interferência do outro”, acrescenta. “Cada um penteia os caracóis da Camila de forma diferente”, sorri a mãe. 

A solução é conversar 

Em qualquer caso de separação ou divórcio, a solução milagrosa para manter a identidade familiar é a comunicação. A psicóloga Inês Camacho lamenta os casos recorrentes em que os pais só falam por e-mails ou em tribunal. “Como há pais que não se conseguem ver, às vezes tenho de fazer sessões em que falo com a mãe, outra em que falo com o pai, falo com o jovem, falo com o jovem e com a mãe, falo com o jovem e com o pai”, exemplifica. 

Por outro lado, há cada vez mais pais que recorrem a consultas para aprenderem a lidar de melhor forma com o divórcio. Segundo Inês Camacho, além das consultas tradicionais, era importante os pais terem disponíveis acções de formação nas escolas sobre parentalidade depois da separação. “O mais relevante é os pais perceberem que têm de comunicar para que haja sintonia nas regras, horários e rotinas em cada casa”, afirma a psicóloga. “Não pode haver umas regras na casa do pai e outras na casa da mãe. Depois a criança vai para o pai, acontece alguma coisa e tem medo de falar com a mãe porque a mãe vai ligar para o pai, e a criança fica ali no meio de segredos que não tem de estar”, justifica. “Depois do divórcio, os pais têm de estar sãos, serem os melhores pais que conseguem e ouvirem as crianças sem apontar o dedo ao outro progenitor”, acrescenta. 

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António e Ricardo gostam de ir jogar futebol para a Quinta das Conchas, em Lisboa Nuno Ferreira Santos

Para António, as conversas com Filipa sobre os vários aspectos da educação do filho são imprescindíveis, mesmo quando se trata de pormenores, como escolher a melhor altura para Ricardo ficar sozinho em casa pela primeira vez enquanto o pai vai ao supermercado. Esta comunicação faz com que Ricardo não fique constrangido em falar com a mãe quando está com o pai e vice-versa. “Quando ele está comigo liga ou envia mensagens à mãe. Se nos déssemos mal se calhar ele não me pedia para o fazer, mas sabe que tem a abertura completa para falar connosco quando quer”, conclui António. 

Já Erica e Pedro falam todos os dias desde que se separaram, há mais de um ano. “Nem que seja a perguntar se a Camila dormiu bem”, exemplifica Erica. Nos últimos meses, desde que a filha começou a falar, a comunicação entre os pais torna-se cada vez mais necessária. “Na semana passada eu estava a comer chocolate e ela pediu um bocado, disse que podia comer porque o pai já lhe tinha dado uma vez. Eu sei que ele não dá, porque já tínhamos acordado isso. Ele nesse dia foi lá jantar a casa, e eu disse à Camila ‘então diz lá quando é que o pai te deu chocolate’ e ela ficou toda envergonhada e não respondeu”, conta Erica. “É importante que perceba que não tem espaço para fazer jogos, porque nós sabemos o que um ou outro faz em relação a ela”, acrescenta.

Márcia considera que o diálogo entre os seus pais, a mãe mais conservadora e o pai mais liberal, resultou numa educação “equilibrada” para ela e para o irmão. Falhando o cenário ideal de todos viverem felizes na mesma casa, a jovem considera que o divórcio foi a melhor opção na sua família. “É melhor do que ter pais infelizes, tristes ou sempre a discutir”, defende. “Às vezes estar uma família junta numa casa onde não se comunica, onde apenas se discute é muito pior do que uma separação. Os miúdos sentem a tensão que existe em casa, são como esponjas, absorvem tudo. Há muitos que me dizem nas consultas ‘os meus pais pensam que não percebi mas eu sei que se vão divorciar’”, corrobora a psicóloga Inês Camacho. 

No futuro, Márcia acha que vai ser cada vez mais “comum” ver famílias em que os pais estão separados mas que “estão sempre presentes” e que “todos são felizes à sua maneira”. “O importante, seja agora ou no futuro, seja com pais juntos ou separados, é a família estar sempre unida e presente, porque é a base de toda a nossa vida”, conclui.

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