Coronavírus: em poucos dias, Trump mudou a agulha de “sob controlo” para “estado de emergência”

Resposta da Casa Branca tem sido criticada por especialistas em saúde pública e congressistas. Presidente norte-americano resistiu a admitir a gravidade da situação e as falhas no sistema de testes mas acabou por declarar “emergência nacional”.

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O Presidente norte-americano nomeou um coordenador para melhorar o sistema de testes Reuters/Tom Brenner

Quase dois meses depois do primeiro caso de covid-19 nos Estados Unidos, confirmado a 21 de Janeiro, a resposta do Presidente Donald Trump à crise é cada vez mais criticada por especialistas em saúde pública e políticos de ambos os partidos. A principal queixa centra-se nas falhas do sistema de testes à população, o que faz temer a existência de um número de casos muito maior do que os 1600 confirmados até agora: desde Janeiro, foram feitos apenas 11 mil testes nos Estados Unidos, um pouco mais do que os realizados na Coreia do Sul a cada dia.

Pressionada pelas críticas, a Casa Branca anunciou, esta sexta-feira, algumas medidas para apressar a chegada de equipamentos de teste aos hospitais e clínicas. Horas depois, o Presidente Trump declarou o estado de emergência nacional – uma medida exigida por vários sectores da sociedade que vai permitir o desbloqueio de recursos importantes para o combate ao novo coronavírus, e a que o Presidente norte-americano tinha resistido até agora.

Culpa do CDC e Obama

Ao anunciar as novas medidas, no Twitter, após semanas a garantir que a situação estava “sob controlo” e um dia depois de ter dito que a realização de testes decorria de forma “muito suave”, o Presidente norte-americano acusou o Centro para Prevenção e Controlo e de Doenças (CDC, na sigla original) e o seu antecessor, o Presidente Barack Obama, de serem os responsáveis pela falha no sistema de testes do país.

“Durante décadas, o CDC olhou para o sistema e estudou-o, mas não fez nada. Seria sempre inadequado e lento para uma pandemia de grande escala, mas eles esperavam que nunca viesse a acontecer uma pandemia”, disse Trump. “E o Presidente Obama fez alterações que só complicaram as coisas”, continuou o Presidente norte-americano.

“Mas já fizemos as mudanças necessárias e os testes em grande escala vão começar a ser feitos em breve. Toda a burocracia foi cortada e está tudo pronto para avançar”, concluiu, sem especificar a que entraves se referia.

É a segunda vez na última semana que Trump acusa a Administração Obama, sem avançar detalhes, de ter alterado o sistema de testes do CDC, o que teria prejudicado a actuação da agência de saúde pública na resposta ao novo coronavírus.

Questionado pela CNN sobre essas acusações, um dos responsáveis da Associação de Laboratórios de Saúde Pública norte-americana, Peter Kyriacopolous, disse desconhecer “que regulamento está em causa” nas declarações de Trump.

E o médico Joshua Sharfstein, vice-director da agência reguladora do medicamento dos Estados Unidos (a Food and Drug Administration, FDA) na presidência de Obama, e professor de Saúde Pública na Universidade Johns Hopkins, desmentiu o Presidente Trump: “Nenhuma medida posta em prática restringiu a realização de teste. Nenhuma medida dos tempos de Obama foi revertida.”

Entre as medidas anunciadas esta sexta-feira pela Casa Branca destaca-se a permissão para que o estado de Nova Iorque autorize os laboratórios públicos e privados a trabalharem em conjunto para desenvolverem testes – uma medida que o governador de Nova Iorque, Andrew Cuomo, anunciou na quinta-feira.

Vai ser também aberta uma linha telefónica, a funcionar 24 horas por dia, para solucionar problemas de autorização e validação de testes enfrentados pelos laboratórios. Este primeiro esforço para solucionar as falhas no sistema de testes vai ser coordenado pelo secretário-adjunto da Saúde, Brett Giroir.

A situação “vai piorar"

A resposta da Casa Branca tem andado atrás das medidas aprovadas pelos vários estados, e não foi da Administração Trump que partiram as recomendações para o fecho de escolas e para a avalancha de cancelamentos de espectáculos e torneios desportivos nas últimas 48 horas. Ainda na quarta-feira, ao anunciar o cancelamento de comícios do Presidente norte-americano nos estados do Colorado e do Nevada, a Casa Branca salientou que a medida tinha sido tomada por “excesso de cautela”.

Na quarta-feira, os esforços do Presidente norte-americano para desvalorizar a situação nos Estados Unidos foram postos em causa por um dos mais prestigiados cientistas norte-americanos, o director do Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas, Anthony Fauci.

Numa audição no Congresso, foi ele quem alertou os cidadãos para o perigo de se continuarem a juntar em grande número – um alerta que levou gigantes como a associação norte-americana de basquetebol, a NBA, a suspender a sua época desportiva.

“Em resumo: a situação vai piorar. Recomendamos que não se formem grandes multidões”, disse Fauci. Na quinta-feira, quase ao mesmo tempo que o Presidente norte-americano dizia que os testes à população decorriam de forma “muito suave”, o mesmo responsável descrevia uma realidade muito diferente: “O sistema não está preparado para aquilo de que precisamos neste momento. Está a falhar. Vamos admiti-lo.”

Cortes no Orçamento

Outra crítica feita à Administração Trump na resposta ao novo coronavírus diz respeito a uma decisão tomada em 2018.

Nesse ano, o CDC norte-americano parou de financiar “actividades para a prevenção de epidemias” em 39 países, incluindo a China. Para reduzir o tamanho do Estado, a Administração Trump recusou-se a movimentar mais verbas para o programa criado pela Administração Obama em 2014 na sequência do surto de ébola – e aplicou um corte de 80% no financiamento.

Na altura, o antigo director do CDC durante os anos da presidência de Barack Obama, Tom Frieden, deixou um aviso numa entrevista na CNN. Os cortes, disse Frieden, “vão fazer aumentar de forma significativa a hipótese de uma epidemia se espalhar sem o nosso conhecimento, pondo em perigo vidas no nosso país e em todo o mundo.”

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