Política e religião em tempo do novo coronavírus

Líderes religiosos gregos garantem que ninguém apanha o vírus na comunhão (quando todas as pessoas bebem da mesma colher). Em Israel, a relação especial com os Estados Unidos levou a uma discussão sobre medidas de quarentena a quem chega do país.

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Um fiel beija um ícone na Catedral Ortodoxa Metropolitana de Atenas Alkis Konstantinidis/REUTERS

A luta contra o novo coronavírus tem razões que a razão parece desconhecer. Um dos desafios parece ser mudar práticas religiosas (e culturais), outro será aplicar restrições igualmente a países quer sejam aliados ou não.

O Irão, um dos países mais afectados, teve como principal foco de contágio a cidade santa de Qom, onde os locais santos permaneceram abertos apesar do aumento de casos de infecções. Entretanto, dois visitantes foram filmados a lamber e beijar locais santos, dizendo que a fé os protege. Depois da divulgação dos vídeos nas redes sociais, o regime anunciou que os dois peregrinos foram presos e que não seria tolerado um comportamento de risco de contágio do novo coronavírus.

Mas nem todos os países lançam recomendações semelhantes para acções que têm o potencial de contagiar um maior número de pessoas. Um caso especial é a Grécia, onde durante a comunhão todos bebem o líquido de um cálice através da mesma colher.

Com o nível de infectados a aumentar, há várias figuras dentro e fora da igreja, incluindo políticos, a garantir que este comportamento é seguro.

Na Grécia o Santo Sínodo, organismo decisor da igreja ortodoxa, emitiu esta segunda-feira – quando o número de casos confirmados era de 73 – uma declaração garantindo que o novo coronavírus não se transmite através da comunhão pelo cálice. Antes, vários responsáveis religiosos tinham explicado que não se transmitia porque a comunhão representa o corpo de Deus e este não tem vírus, outros porque quem comunga está a aproximar-se de Deus e este tem o poder de curar.

Uma questão de fé?

Isto acontece quando se têm ouvido muitas vozes a favor da manutenção da comunhão, incluindo de políticos que têm posto fotos nas redes sociais a ir à missa (e presume-se a comungar). A deputada da Nova Democracia Elea Rapti declarou que tinha comungado e iria “continuar a fazê-lo”. A atravessar linhas de fractura política, até um antigo deputado do Syriza (esquerda e tradicionalmente contra a influência da Igreja no Estado e na vida do país) – que é também cardiologista, disse que quem “sente que precisa de tomar parte na comunhão pode fazê-lo sem qualquer medo ou hesitação”.

O único a admitir um risco foi o bispo Serafeim, do Pireu, que alegou que quem não tem realmente fé corre de facto risco ao comungar.

A federação grega de médicos hospitalares já reagiu dizendo que não deve haver excepções aos avisos de saúde feitos pelas autoridades de saúde “por razões religiosas, sacramentais ou metafísicas”.

O antigo vice-ministro da Saúde do Syriza Pavlos Polakis insurgiu-se também contra esta ideia: “não se pode deixar que as pessoas bebam da mesma colher e dizer-lhes que não há perigo – isto é talibanismo cristão”.

Outras autoridades religiosas têm posto travão a práticas que possam transmitir o vírus: por exemplo, o costume judaico de beijar, ou tocar, os pequenos rolos, normalmente fechados numa caixa posta na diagonal, que estão à porta da esmagadora maioria das casas judaicas (ou portas de quartos de hotel). O principal rabino ashkenazi de Israel, David Lau, lançou um aviso para que os fiéis deixassem este costume, que não é uma regra obrigatória do judaísmo, esclareceu. “É suficiente que uma pessoa reflicta nos versos escritos no rolo quando se entra ou sai de uma casa”, declarou.

Lau também explicou que a lei judaica dá mais importância à saúde do que aos preceitos religiosos e por isso quem estiver de quarentena pode ouvir a tradicional leitura do livro de Ester via streaming e não presencialmente, como ditariam as regras.

Israel tem 42 casos confirmados de pessoas doentes com covid-19 e mais de 5000 pessoas em quarentena – e com as últimas medidas o número deverá disparar para 300 mil num país de nove milhões.

O Governo israelita viu-se a braços com um diferendo que durou dois dias entre os responsáveis da Saúde e o ministro do sector, por um lado, e o primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, por outro, sobre quem deve ficar de quarentena (14 dias) ao chegar ao país: as autoridades de saúde defendiam que deviam ficar em quarentena todos os que chegassem de zonas afectadas, incluindo dos EUA, e Netanyahu tentava excluir os Estados Unidos porque “não são um país qualquer”.

Segundo o Jerusalem Post, Netanyahu acabou então por anunciar que como já estavam tantos países incluídos na recomendação de quarentena, mais valia estendê-la a todos os países e esta segunda-feira o Governo anunciou que estavam sujeitos a quarentena todas as pessoas chegadas a Israel, vindas de onde viessem. Os estrangeiros que não tivessem meios para estar em quarentena seriam enviados de volta aos seus países.

Israel tem despertado atenção quer por algumas medidas originais – como as fitas em autocarros para impedir os passageiros de estar muito perto do motorista, por um lado, e para ter zonas sem ninguém para a concentração de passageiros ser menor, por outro – quer por sugestões originais, como quando Netanyahu incentivou os israelitas a usar antes o cumprimento típico na Índia, com as duas mãos juntas dizendo “namaste” (ou “shalom”, sugeriu), para impedir cumprimentos que exijam proximidade ou apertos de mão.

Uma sugestão que o primeiro-ministro parece ter esquecido depois de provocar polémica foi a de pôr crianças e adolescentes a tratar da desinfestação de locais públicos, “já que estes não são, graças a Deus, afectados pela doença” (o que não é verdade: apesar de crianças e adolescentes terem em geral sintomas mais leves, caso tenham outros problemas de saúde podem sofrer efeitos da covid-19).

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