Os vírus que põem a democracia em risco

O Presidente da República e o primeiro-ministro não podem desvalorizar os riscos que a democracia portuguesa corre.

Globalmente, o Governo tem agido bem na tentativa de conter o alastramento em Portugal da epidemia do coronavírus. Tem transmitido informação e tentado criar sentimentos de controlo e de tranquilidade, apesar de, evidentemente, existirem falhas e algumas hesitações, que, aliás, espelham o deficiente conhecimento sobre a doença a nível mundial. É de saudar a segurança política demonstrada pelo primeiro-ministro, António Costa, a capacidade política e institucional da ministra da Saúde, Marta Temido, bem como a gestão da crise pela directora-geral de Saúde, Graça Freitas.

Sinto-me na obrigação de manifestar solidariedade para com Graça Freitas pela situação em que foi colocada pelo Expresso, ao fazer manchete de uma suposta declaração sua sobre o coronavírus, quando, de facto, na entrevista, Graça Freitas se referia a um modelo teórico de cenarização e não à realidade portuguesa actual. Pior. A primeira página do semanário foi divulgada isoladamente, sexta à noite, e usada como argumento no Expresso da Meia-Noite, completamente descontextualizada. Causar alarme público não é a função do jornalismo.

Se o Governo tem cumprido em relação à epidemia, há domínios em que primeiro-ministro, António Costa, não tem conseguido garantir a estabilidade institucional que sustentam a autoridade do Estado democrático. O exemplo mais paradigmático é as duas tentativas falhadas de eleger os representantes da Assembleia da República nos órgãos institucionais externos. Uma crise que sacrificou Correia de Campos, enquanto presidente do Conselho de Concertação Social.

É certo que António Costa não está sozinho nesta criação de instabilidade institucional. O líder do PSD, Rui Rio, também contribuiu. Tendo havido conversações entre a direcção máxima do PSD e a cúpula do PS, pelo menos para a elaboração conjunta da lista de candidatos ao Conselho Superior de Justiça (CSM), o sentido de responsabilidade institucional de Rui Rio não podia ter permitido que os deputados do PSD ficassem à solta nesta votação. E foi disso acusado pela líder parlamentar do PS, Ana Catarina Mendonça Mendes.

Mas atenção: a fuga de votos foi também expressiva entre os socialistas. Não é compreensível que António Costa tenha proposto para o Tribunal Constitucional alguém com o currículo de Vitalino Canas, nem que tenha incluído José António Pinto Ribeiro na lista para o CSM, depois do absentismo que este manteve no Conselho Superior do Ministério Público. É desejável que a escolha de novos nomes demonstre bom senso institucional.

O Governo e os partidos parlamentares têm obrigação de garantir que o Estado democrático e a estabilidade institucional não são postos em causa por taticismos de guerrilha partidária. Isto no momento em que estão a deslassar os valores éticos e a estabilidade institucional da democracia perante investigações de corrupção no topo da hierarquia do aparelho judicial e depois de as Forças Armadas terem sido postas em causa pelo processo de Tancos e agora pelas investigações do Tribunal de Contas ao Hospital das Forças Armadas. 

Ao encerrar a conferência dos 30 anos do PÚBLICO, o Presidente da República apelou aos consensos de regime e ao diálogo entre partidos parlamentares. Mas não são apenas o Governo e os partidos que estão a falhar na transmissão à sociedade da autoridade de Estado e a permitir que se instale um caldo de cultura que pode pôr a democracia em risco.

Marcelo Rebelo de Sousa também não tem sabido manter o bom senso institucional devido ao primeiro órgão soberania do Estado. A falta de contenção e o excesso de exposição são perniciosos para a estabilidade político-institucional. O exemplo mais recente é a forma como falou sobre a epidemia do coronavírus. Qual o interesse de o Presidente da República dizer que queria estar ao pé dos doentes?

A gravitas é a essência do exercício do poder político. É vital à democracia que quem ocupa lugares político-institucionais na hierarquia do Estado vele pela manutenção desse simbolismo, enquanto referências de autoridade do Estado democrático. A banalização que Marcelo Rebelo de Sousa tem feito do exercício das suas funções é perniciosa à democracia, porque encerra em si mesmo populismo e abre a porta aos extremismos.

O Presidente da República e o primeiro-ministro não podem desvalorizar os riscos que a democracia portuguesa corre. Para mais, quando, no Parlamento, está o deputado André Ventura, que – para quem tivesse dúvidas , na apresentação da sua candidatura às presidenciais, no sábado, foi bem explícito a mostrar ao que vem, como relatou Maria Lopes, na magnífica reportagem do PÚBLICO. Aplaudido por uma plateia composta por uma espécie de órfãos tardios de Salazar, André Ventura proclamou que o “sistema já não serve” e assumiu que quer “passar para a Quarta República” – provavelmente, um regime autoritário.

Valha à democracia portuguesa que, apesar de hesitações no início da legislatura, o presidente da Assembleia da República, Eduardo Ferro Rodrigues, tenha sentido de Estado, uma longa experiência política e uma sólida cultura democrática.

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