A moral é um jogo político

A partir de uma frase da escritora portuguesa Lídia Jorge, quatro histórias que giram em torno da ideia de uma nova moral na forma de agir, que por vezes tem mais a ver com as consequências em termos de imagem do que com uma ética de responsabilidade e responsabilização, mesmo num caso polémico como o de Polanski em França.

“O que acontece é que está a ser criada uma nova ontologia. As pessoas já sabem à partida que não haverá castigo. Isto é contrariar uma ontologia que foi criada, muito antes do cristianismo, pelos gregos. Toda a tragédia grega tem na base essa ideia de que um homem um dia se sente culpado e arranca os olhos.” Lídia Jorge, escritora

Redondo vocábulo

Lidera, aparentemente, o mais progressista dos governos que a Espanha teve desde o fim do franquismo. Fruto de uma coligação que muito lhe custou a engolir, é certo, e só aceitou por não ter mais remédio, depois de as urnas lhe chumbarem a vontade de governar sozinho. Mesmo assim: o que faz o primeiro-ministro socialista Pedro Sánchez com um chefe de gabinete de direita que, “em várias ocasiões e com propósitos de populismo eleitoral”, agitou a “bandeira da xenofobia e contra a igualdade”? Como perguntava no site espanhol Público, Antonio Gómez Movellán, presidente da Europa Laica. A Iván Redondo, consultor político que sempre trabalhou com os conservadores e até foi chefe de gabinete do presidente da Extremadura do Partido Popular, atribuiu o líder do PSOE o poder de mexer na sombra os cordelinhos do Governo sem que houvesse um assomo de protesto entre os socialistas espanhóis. Como referia ao El País um histórico socialista, Redondo é “um killer” que se “dá muito bem com Sánchez porque nenhum deles se importa com nada”. Será por esse “tacticismo” político que a esquerda se deita a perder, como afirma a escritora Lídia Jorge, em entrevista ao PÚBLICO? Se a política for gerida por sondagens, a ética deixará de servir à esquerda como trunfo diferenciador.

Moral só com áudio

O ministro das Telecomunicações e Tecnologia de Informação do Nepal foi gravado a negociar com uma empresa suíça de equipamento o recebimento de comissões em troca de um contrato do Estado. Gokul Prasad Baskota é amigo pessoal do primeiro-ministro Sharma Oli, a ponto de, quando este se mudou para a residência oficial, ter ido viver para casa dele. Mesmo assim, Oli, depois de uma reunião com Pushpa Kamal Dahal, que com ele lidera o Partido Comunista do Nepal, decidiu que só havia uma solução: o ministro apresentar a demissão e Baskota assim o fez, alegando “razões morais”. “Não pouparei ninguém que trabalhe contra o sistema e a boa governança, por mais próximo de mim que esteja”, afirmou o chefe de Governo, citado pelo Himalayan Times. O Congresso Nepalês, o maior partido da oposição, além de exigir a demissão do ministro quis esclarecimentos sobre a quem se referia Baskota quando falava em “nós”, ao negociar o suborno. Como bem lembrava o referido jornal, esta quinta-feira em editorial, o representante da empresa suíça garante que fez chegar a gravação ao primeiro-ministro há dois meses, mas Oli recusou-se a tomar qualquer medida contra o seu amigo. E a oposição, terça-feira no Parlamento, referia que ele não tinha “moral” para continuar a governar.

Eugenia

Não admira que nestes tempos de reemergência da extrema-direita alguns dos seus temas mais controversos reapareçam igualmente a debate. E apesar de, tal como Gry Wrestler, professora de Bioética no King’s College de Londres, afirmava esta quarta-feira no site The Conversation, “o movimento eugenista do passado foi completamente desacreditado por razões morais e científicas”, mais ainda por estar associado ao nazismo, isso não impede a saída de alguns em sua defesa ainda hoje. O primeiro-ministro britânico teve de responder esta semana no Parlamento sobre o assunto, depois de o seu conselheiro Andrew Sabisky se ter demitido por causa, entre outras coisas, da sua defesa da eugenia. Boris Johnson demarcou-se do seu ex-colaborador – “não partilho em absoluto essas posições, nem elas representam as posições de alguém deste Governo” –, porém, da mesma maneira que um jornalista demorou poucos minutos a encontrar na Internet as controversas opiniões de Sabisky, também os assessores de Johnson o deveriam ter feito ou fizeram. E ou são incompetentes ou não se importaram. Sabisky mostrou-se altruísta, demitindo-se “para não ser uma distracção”, sem, contudo, esclarecer se continua a ser um crente na eugenia.

Mulheres de César

A cerimónia de entrega dos prémios do cinema francês, que decorre esta sexta-feira, em Paris, não vai contar com a presença do realizador Roman Polanski, apesar de o seu último filme, J’Accuse – O Oficial e o Espião, estar nomeado em 12 categorias. Polanski, polaco de nascimento com cidadania francesa, é foragido da justiça dos EUA, condenado em 1978 por violação de uma rapariga de 13 anos. Grupos feministas, políticos e personalidades da indústria cinematográfica francesa manifestaram-se contra a inclusão de um violador nos candidatos aos prémios mais prestigiados do cinema francês, mas o júri recusou-se a tomar uma “posição moral” sobre uma obra artística e demitiu-se há duas semanas. Para a noite desta sexta-feira estão marcados mais protestos junto ao local da cerimónia. Curiosamente, a segunda obra com mais nomeações, Retrato de uma rapariga em Chamas, é de Adèle Haenel que, em Novembro, revelou ter sido abusada sexualmente na adolescência pelo realizador Christophe Ruggia. A França, que sempre olhou de forma branda para estes casos, está a mudar de atitude, como está a sentir na pele o agora ostracizado Gabriel Matzneff que passou a vida a escrever sobre as suas relações com raparigas e rapazes adolescentes sem que o deixassem de considerar um dos grandes autores franceses.

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