Eduardo Palaio, o guardião da tipografia

Nasceu numa tipografia e toda a vida tentou fugir daquele trabalho “tremendo”. Foi cartoonista com José Vilhena, andou no Ultramar, depois na acção oposicionista ao regime. Tem livros premiados, pinta quadros “para ganhar dinheiro” e acabou por regressar à tipografia da família no Seixal. Há uns anos, transformou-a num museu para que a importância civilizacional daquele advento não fique esquecida na profusão do digital.

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Nuno Ferreira Santos

Imagine-se um miúdo, de frente para uma parede cerca de oito ou nove horas seguidas, em pé, repetindo os mesmos gestos, uma e outra e outra vez. A separar o original do duplicado do triplicado. A pôr cola na lombada de um livro, depois a capa, a cola, a capa. Ou a devolver centenas de tipos móveis à caixa, cada letra do abecedário no seu recanto. “É tremendo, não é?”

Para os primeiros, Eduardo Palaio não encontrou escape, mas para as letras lembra-se de inventar um jogo. Campeonatos entre o alfabeto. “O A era o Sporting, o E era o Benfica, o O era o Porto e o S o Belenenses, que eram os grandes na altura.” Por cada fila de caracteres devolvidos à caixa, uma jornada de duas partidas. A letra que surgisse mais vezes ganhava cada jogo. “Uma vitória eram dois pontos, um empate era um.” E tanto podiam ser apenas quatro, como oito equipas, oito letras diferentes, com primeira e segunda divisão. Já quando “era época do defeso”, disputavam rounds de boxe e, se tinha de “distribuir” rápido porque o pai estava atento, “então era mais fácil o ciclismo”.

Eduardo inventava muitas brincadeiras, que não partilhava com mais ninguém com medo de represálias. Se tinha de varrer a oficina, organizava lutas entre os fósforos que o pai, “um fumador inveterado”, deitava para o chão. “Tive fósforos que duraram um mês a vencer sucessivos combates.” Quando morriam no ringue imaginário, Eduardo enrolava-os nas pratas dos maços de cigarros como se fossem os sarcófagos egípcios que via nos filmes da época. “Sempre era uma forma de aguentar aquilo”, recorda.

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Por cada linha, uma partida de futebol entre duas letras Nuno Ferreira Santos

Hoje com 77 anos, Eduardo Palaio “nasceu numa tipografia”. Aos oito anos começou a trabalhar na oficina da família, primeiro na Figueira da Foz e, desde 1955, no Seixal, onde nos encontramos. Naquela altura, a maioria das tipografias eram negócios familiares e aquela não era excepção. “Os trabalhadores eram o meu pai, a minha mãe, eu e o meu irmão.” Numa das paredes da velha tipografia, entretanto transformada em núcleo museológico, Eduardo desenhou os quatro a trabalhar sobre uma mesa, na fase de acabamentos. “É uma espécie de catarse.”

O pai, conta, tinha “dois aforismos”: “o trabalho do menino é pouco, mas quem o despreza é louco” e “trabalhem que para vocês é”. Era um homem “à antiga”. “Quando fui para a tropa nunca achei a disciplina tão fraca.” Os tempos livres de escola eram passados na tipografia. Nas quadras festivas e nas férias grandes, ouvia os outros miúdos a correr lá fora, a brincar junto ao rio. Era “terrível”. “Logo de puto pirei-me. Havia duas possibilidades de fuga: uma era a tropa, outra era casando. Tentei as duas mas não funcionaram muito bem”, ri-se.

Pode-se dizer que a vida de Eduardo Palaio se assemelha àquele móvel de múltiplas gavetas e compartimentos onde, em pequeno, guardava as centenas de letras esculpidas a metal. Ainda hoje é capaz de o fazer a uma velocidade que impressiona. Quando menos se espera, abre na conversa mais uma caixa, salta nova linha do currículo, uma história e outra e outra. Lá dentro, nada se organiza como na estante imaculada dos tipos móveis. A tipografia, a guerra, a escrita, o desenho, a pintura, o associativismo, o oposicionismo, a história – tudo se cruza e se interliga (na vida e na conversa) como cada pormenor das salas onde nos encontramos. É palpável a inquietação, a curiosidade e a criatividade de um homem irrequieto, com muito para contar. Não há recanto que não tenha uma gravura, um excerto, um nome, um impresso, um instrumento, um artefacto.

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Eduardo Palaio "nasceu numa tipografia" Nuno Ferreira Santos

Cartoons, livros, quadros – e a guerra

Eduardo teria uns 17 anos quando foi parar à revista O Mundo Ri, fundada por José Vilhena. Na escola comercial, onde começou por estudar Económicas e Financeiras e depois mudar para Direito, costumava fazer caricaturas dos professores, dos contínuos, “de tudo”. Um dia, um professor sugeriu-lhe que fosse mostrá-los a José Vilhena. “O tipo achou-me piada e contratou-me”, recorda. “Era um excelente pintor, grande desenhador e escritor.” Deixava Eduardo traçar umas “graças”, “coisas perfeitamente ingénuas”. Numa das primeiras tiras que publicou, surge um atleta com a tocha olímpica ao centro de um estádio e, na vinheta seguinte, a sair do recinto em chamas. Upss. “Lembro-me que uma vez o Vilhena chamou-me e, primeiro, para me moralizar, disse que eu era o segundo melhor desenhador de humor que havia em Portugal, ex aequo com o Martins, que estava n'A Bola. O melhor era ele. E era. ‘Mas, ó Palaio, você tem de fazer um bocado melhor as mulheres boas'”, ri-se.

Entretanto, os estudos e os cartoons foram interrompidos pela tropa, mais dois anos de Guerra do Ultramar. Foi comandante de pelotão em Angola. Nas férias, em vez de regressar a Portugal, preferiu ficar “sempre lá para conhecer o modo de vida daquelas pessoas”. “Apontei os costumes dos nativos, dormi em cubatas, andei por caminhos que eu sei lá.”

Na escola, Eduardo costumava fazer caricaturas dos professores, dos contínuos, “de tudo” Nuno Ferreira Santos
Eduardo pinta "para ganhar dinheiro" - aqui, um retrato de um tio Nuno Ferreira Santos
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Na escola, Eduardo costumava fazer caricaturas dos professores, dos contínuos, “de tudo” Nuno Ferreira Santos

Sentiu-se sempre “muito atraído” pela escrita mas só se “atreveu” a tirá-la da gaveta quando sentiu que “devia dar testemunho daquilo que tinha visto na guerra”. Ainda enviou uns relatos para um jornal, antes do 25 de Abril, mas acabaram por não ser publicados. “Se há uma profissão que gostaria de ter exercido hoje, com estes anos todos que tenho, seria repórter.” Mais tarde, haveria de regressar às memórias do Ultramar para escrever PeregrinaCão de Artur Vilar, editado pela Miosótis, inspirado nas histórias de um homem que conheceu em Angola, sapateiro, antigo caçador profissional, guia e dono de fazenda, “um homem extraordinário que nunca se habituou à ideia de ser colono nem dono de pessoas”.

Eduardo não concordava com a guerra. Acreditava que “tinha estado pelo lado dos bandidos”. Tornou-se oposicionista. Nunca teve de andar clandestino nem esteve em partidos políticos, mas desdobrava-se na oposição ao regime ditatorial. Havia muita coisa a fazer em colectividades, cineclubes, propaganda. Como tinha a experiência do que era a guerra colonial, pude contá-la. Corri montes de coisas.” Mais tarde, foi um dos fundadores da primeira escola para adultos, de ensino secundário, no Seixal, no âmbito da Cooperativa Operário de Consumo 31 de Janeiro, por exemplo. Teve “uma série de profissões”. Foi soldador, técnico de contas, ajudante de pedreiro. Voltou a publicar cartoons, n'O Semanário. Fez exposições em Portugal, em Cuba, no México. É autor de vários murais no concelho do Seixal.

Nos anos 1980, quando a “participação cívica abrandou”, Eduardo viu-se no desemprego e sem “grandes proveitos”, dado o “tipo de vida que levava” até então. “De maneira que se juntaram duas coisas”: o desejo do pai, entretanto reformado, e do irmão para que “regressasse à oficina”, e a necessidade de subsistência. Voltou à tipografia, agora já com maquinaria moderna. E, depois de a empresa ter saído das antigas instalações e de se ter reformado (hoje é um dos filhos que está à frente do negócio), decidiu transformá-las num espaço museológico, em parceria com a Câmara Municipal do Seixal.

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Todos os dias, Eduardo acolhe os visitantes nas pequenas salas cobertas de objectos e maquinaria da antiga tipografia transformada em núcleo museológico Pedro Fazeres

É Eduardo que, todos os dias (excepto segunda e terça), acolhe os visitantes nas pequenas salas cobertas de objectos e maquinaria. “Enchi isto de coisas que, além de serem importantes na história da tipografia, do livro e da cultura em geral, são suscitadores de pergunta.” As histórias nascem sem esforço na conversa. Recorda William Caxton, o primeiro impressor em Inglaterra; cita de memória Erasmus de Roterdão, debita os nomes de alguns dos primeiros tipógrafos, “intelectuais, tradutores de latim e de grego”, homenageados por algumas “fontes que hoje usamos no computador”; enumera os principais impressores em Portugal até ao século XVIII. Mas que não apelidem de “paixão” ou “entusiasmo” a forma energética e minuciosa como fala de tudo isto. “É ser profissional. Fui profissional de tipógrafo e agora sou profissional do museu. Tenho de estar documentado e passar informação. É só isso.” Ainda que, admite, haja “muitas histórias muito engraçadas”.

Foi em todo este universo que se inspirou para escrever Caixa Baixa, o livro com que em 2010 venceu o Prémio Nacional de Conto Manuel da Fonseca e, no ano seguinte, o Grande Prémio de Conto Camilo Castelo Branco, um dos mais prestigiados galardões literários portugueses, atribuído pela Associação Portuguesa de Escritores e entregue, ao longo dos anos, a autores como Mário de Carvalho, Luísa Costa Gomes, José Eduardo Agualusa, Gonçalo M. Tavares ou Afonso Cruz. “Não houve nenhum jornal que tivesse olhado para esta lista de nomes consagrados e, ao menos, se tivesse perguntado: ‘O que é isto? Quem é este gajo?’ Anda tudo nas capelinhas”, critica Eduardo. Ao longo dos anos, foi publicando alguns livros, a maioria edições de autor. O último a chegar às bancas foi Os Dez de Tânger, resposta a um desafio proposto por José Manuel Barata Feyo e que seria publicado em 2014, pelo Clube do Autor.

No tempo livre, Eduardo pinta “para ganhar dinheiro”, diz, sem rodeios. “Já vendi, sem exagero, centenas de quadros.” Aguarelas, muitos cenários da paisagem ribeirinha do Seixal, retratos. Agora parou. “Há um ano e tal que não faço nada, porque tenho andado a escrever.” O próximo livro já está pronto. Mas, para já, é ainda um segredo guardado pelas máquinas.

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