Pinóquio segundo Garrone em Berlim, ou a educação moral a falar para o boneco

A nova versão do clássico infanto-juvenil pelo autor de Gomorra é um bom filme demasiado tolhido pelo peso da tradição.

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Roberto Begnini em Pinóquio Greta De Lazzaris

Sempre houve no cinema do italiano Matteo Garrone um interesse pela fábula, pelo conto de fadas, pelos inocentes que se deixam perder nos seus próprios sonhos (pensemos no candidato ao reality show de Reality, ou à inocência do seu tratador de cães em Dogman). Não é, por isso, tão descabido como isso vê-lo a atirar-se ao Pinóquio de Carlo Collodi, história clássica da literatura infanto-juvenil: Pinóquio, o boneco de madeira que quer ser menino, é o inocente original, cuja educação moral acompanhamos ao longo das suas múltiplas atribulações.

Mas o boneco não é o único inocente da versão de Garrone, que estreou em Itália a tempo do Natal e iniciou agora em Berlim a sua carreira internacional – em Portugal, vai inaugurar a edição 2020 da Festa do Cinema Italiano. No seu Pinocchio (Berlinale Special), também o marceneiro Geppetto é um pobre diabo que, mesmo quando já não tem dinheiro nem comida, continua a perseguir os seus sonhos e a acreditar neles com toda a inocência do mundo.

Isto começa por criar alguns problemas porque o princípio do filme tem muito Geppetto, e Geppetto é Roberto Benigni, que fez em 2003 uma versão absolutamente desastrosa da história, procurando fazer Fellini sem chegar sequer perto. Mas Garrone sabe controlar o histrionismo e tratar Benigni como um actor, resultando numa sobriedade triste e resignada que nunca perde a dimensão de “santa loucura” de uma personagem que, literalmente, “faz o seu filho” (e que notável é a interpretação, delicada contudo profundamente contida, de Federico Ielapi como Pinóquio).

Nesse mesmo processo, o cineasta romano demonstra que tirou as devidas lições da experiência falhada de O Conto dos Contos, em 2015: o seu Pinóquio é uma fantasia que se constrói a partir da realidade que rodeia o boneco, onde tudo parece nascer, diríamos, organicamente, com o trabalho de maquilhagem extraordinário de Mark Coulier a tornar visível essa organicidade na transformação dos actores em marionetas, caracóis, raposas, e, sobretudo, em madeira.

Contudo, Garrone parece demasiado contido, como se se sentisse tolhido pelo peso da obra que quis adaptar. É só na recta final, a partir da viagem para o País das Brincadeiras, que o cineasta confronta verdadeiramente Pinóquio com a violência de um mundo onde só o amor (do pai pelo filho, do filho pelo pai, e da Fada de Marine Vacth que é a mãe “de substituição”) pode salvar - dentro de limites perfeitamente aceitáveis para um filme de família, entenda-se! Aí, Matteo Garrone solta-se, Pinóquio solta-se, tudo encaixa no sítio. Não está ao nível da versão de 1972 de Comencini, mas não desmerece dos pergaminhos. 

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