A propósito da cidade líquida — os usos e abusos dos conceitos

Só os pobres de espírito renunciam ao exercício da herança como exercício de acumulação mas também de crítica.

Quem julga que as palavras são um receptáculo vazio de significado flutuante está a fazer um típico exercício de sobreinterpretação, isto é, a criar um sentido que é avesso ao atrito dos factos. Entre esses factos encontra-se — hélas! — o próprio autor que, bem ou mal, forjou um sistema de pensamento dentro do qual os seus conceitos ganham consistência. As palavras não querem dizer tudo e o seu contrário, a não ser que abdiquemos de critérios de inteligibilidade e de comunicabilidade.

Vem isto a propósito da folha de sala censurada da Regina Guimarães, nomeadamente quando critica o abuso interpretativo do Paulo Cunha e Silva a respeito da “cidade líquida”, termo cunhado por Zygmunt Bauman.

O sociólogo polaco identifica, na modernidade, dois momentos: o período da modernidade (sólida) e o período da pós-modernidade (ou modernidade líquida). A fase da modernidade sólida seria, segundo ele, marcada pelo controle do mundo, pela orientação para a ciência, para a técnica e para a racionalidade — características destinadas a eliminar quaisquer ambivalências. Na era da solidez, as dubiedades deveriam ser realinhadas, classificadas e rotuladas, explicadas pela ciência e submetidas à técnica. A modernidade sólida, embora tendo, para o autor, a marca da dominação e da subjugação à razão e à técnica, beneficiava de um ímpeto organizador e classificatório que contribuía, ainda que de forma ambígua, para unir o mundo.

No período da modernidade sólida, a igualdade era mais determinante do que a liberdade individual e mais valorizada do que os impulsos distintivos. Contudo, a evolução técnica levou a que, eventualmente (nas últimas décadas do século XX), se esbatessem as fronteiras entre tempo e espaço, liquefazendo os principais sustentáculos da modernidade “sólida”. Donde, o principal atributo da modernidade “líquida” seria já não a manutenção de um ideal comunitário e a respetiva uniformização de condutas e de estilos de vida, mas, antes, a mobilidade, a celeridade do quotidiano, a liquidez das relações, a radicalização do individualismo (a “furiosa ‘individualização’”, nas palavras de Bauman) e da competição, a desconfiança e o distanciamento das relações de sociabilidade que assentam em relações de interdependência. A identidade individual torna-se transitória, esfumam-se as linhas orientadoras comunitárias que regem o comportamento individual e a principal via de construção identitária passa a ser o consumo. A modernidade líquida reflete uma sociedade onde consumir é a principal fonte de prazer e onde a dependência do consumo é indestrinçável da liberdade individual e da construção identitária. Na modernidade líquida, o culto da individualidade agudiza-se ao ponto de o “direito” a ser “distinto”, a ser “único”, adquirir contornos de “dever”.

Já a cidade é o espaço ou contexto que, na modernidade líquida, condensa todas as efemeridades. A vida na cidade promove o encontro fugaz entre as pessoas, sem que seja necessário investir em compromissos, em obrigações mútuas ou no estreitamento de laços. A “cidade líquida” prefere a velocidade à permanência, a mudança à solidez. Tudo nela é instável: a habitação, o trabalho, os laços familiares e afetivos. O próprio modus operandi das instituições é formatado pela transitoriedade: os eventos são instantâneos, os movimentos e ligações são passageiros, o momento presente é dominado pela espetacularização, os happenings oficiais e corporativos pontuam a vida citadina.

Enquanto na fase da modernidade sólida o principal receio dos indivíduos consistia na eventual inadequação face à norma vigente (na não pertença), na modernidade líquida o que mais os assombra é a possibilidade de não se diferenciarem, de não se destacarem — e, consequentemente, de soçobrarem. A sobrevalorização do individualismo contemporâneo, ao mesmo tempo que confere maior agência individual — libertando as pessoas das amarras dos laços sociais e institucionais — gera medo e incerteza, levando-as a sentirem-se frágeis e vulneráveis. A cidade líquida é, assim, o contexto onde convivem vários indivíduos, desconhecidos, mas em proximidade extrema. A alteridade é olhada com desconfiança e estranheza e, face ao receio de perigos imaginados e da instauração do caos, a cidade líquida torna-se hiper vigilante: com a delinquência ao virar da esquina, instalam-se câmaras de vigilância, constroem-se muros, segrega-se territorialmente, separa-se o “nós” dos “outros”, a ordem do caos, e criam-se ‘ghettos’ — sem se compreender que é com a criação de fronteiras com vista a separar pretensas diferenças que a cisões emergem.

A cidade líquida é pois uma distopia que ameaça concretizar-se nas nossas urbes. Ninguém esquece a liberdade fantasiosa que o Paulo (amigo de um dos autores deste artigo) tinha na apropriação e adulteração de conceitos. Ele era uma pessoa de fantasias e de sonhos, nem sempre, como é o caso, amigos do rigor. Percebemos bem que o Paulo tenha seguido o seu divertido instinto pós-moderno de ver na cidade líquida um sinónimo de caos criativo a partir do qual surge o rizoma dos projectos. Mas, convenhamos, afasta-se (e de que maneira!) da raiz do conceito.

Querer, em seu nome, como que honrando a sua memória, exercer um direito póstumo de censura é um absurdo. Só os imbecis sacralizam e congelam os mestres. Só os pobres de espírito renunciam ao exercício da herança como exercício de acumulação mas também de crítica.

Os autores escrevem segundo o Acordo Ortográfico

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