Eutanásia: “Enquanto há vida há esperança” e vice-versa

Mais do que de ordem partidária, religiosa ou ideológica, é da ordem da consciência individual, tendo em conta as circunstâncias concretas que a determinam e contextualizam.

Face à questão da eutanásia, a tendência é a de fugirmos a tal questão. A vida continua a ser o bem supremo para todos e colocar a hipótese da morte, em regra, assusta-nos, apavora-nos. E tendemos a declinar essa reflexão.

Mas, como sempre, a melhor forma de fugir a algo que nos confrange (ou até que nos ameaça) é enfrentá-lo, pelo menos reflecti-lo. Aliás, não há por e para onde fugir a esta questão. Por uma razão muito simples e que, por tão entusiasmante e animadora, contrasta com o quanto deprimente a questão da morte pode ser. A razão é estarmos vivos.

Estamos vivos e, portanto, se, por um lado, nos damos por felizes e alegramos por isso, por outro, sabemos que não há por e para onde fugir à (certeza da) morte. Mas a questão complica-se quando a hipótese já não é “só” essa certeza, ainda que temporalmente indefinida, mais ou menos presumida como ainda (relativamente) distante, mas já a certeza definida e definitiva, irremediável e irreversível, da morte próxima por uma lesão ou uma doença incurável e fatal.

E complica-se ainda mais quando a angústia dessa hipótese é agravada por ser associada a sofrimento permanente e duradouro, atroz, insuportável. Ou seja, quando a única hipótese de fugir a tal sofrimento é o eventual abreviamento da morte. E daí poder surgir o angustiante dilema de sermos nós próprios a desejar promover, ou não, o fim da nossa vida.

Nesta reflexão, que ainda que só abstracta já é consternadora (se não dramática) para toda a gente, é portanto de admitir que surja um lampejo de esperança de fugir ao sofrimento na alternativa, lógica (se é que nesta matéria alguma lógica pode haver) e humanamente compreensível nestas circunstâncias limite, de que, sabendo-se a morte próxima, irremediavelmente próxima, então, a sua antecipação voluntária poderia acabar com esse sofrimento insuportável e irreversível.

E tal eventual lampejo de esperança poder-se-á acentuar quando se sabe que a ciência médica, ainda que já (ou ainda) não possa pôr cobro duradouro a todo e qualquer sofrimento nem, muito menos, prolongar sem ele a vida (bom será que se avance cada vez mais neste domínio da ciência, como via de a questão da eutanásia se tornar impertinente), pode fazer com que a antecipação voluntária (exclusivamente por parte do doente) da morte, em si, ocorra com dignidade e em condições de menor ou (quase) ausência de sofrimento.

Contudo, tal eventual lampejo de esperança nessa hipótese de alguém nessa situação de extremo e definitivo sofrimento rapidamente se apaga, porque tal, pelo menos até agora, não é viável por impedimento legal (Código Penal e Código Deontológico dos Médicos), responsabilizando criminalmente, por eventual envolvimento nisso, médicos e enfermeiros.

Em 2018, por promoção política (projectos legislativos apresentadas por quatro partidos – PS, BE, PAN e PEV - na Assembleia da República), foi proposta a anulação, adaptação ou condicionamento de tal restrição legal à assistência médica da antecipação voluntária da morte, vulgo, eutanásia.

Com algumas diferenças entre as propostas legislativas, tais projectos estabeleciam para isso condições muito rigorosas. Além de outras, vontade livre e séria do doente, exclusivamente assumida por este (e nunca por interposta pessoa, familiar ou não) e encontrando-se este totalmente consciente e em condições de total sanidade mental; confirmação várias vezes dessa vontade de antecipação da morte medicamente assistida, existência de vários pareceres médicos, incluindo sempre pelo menos de um psiquiatra e um especialista da área das doenças do doente em causa; avaliação, com parecer vinculativo, de uma comissão especializada; possibilidade de objecção de consciência dos médicos e enfermeiros relativamente ao (não) envolvimento no processo; ser este desenvolvido no Serviço Nacional de Saúde ou em serviços privados oficialmente acreditados.

Subjacente a estas propostas legislativas, esteve, fundamentalmente, a perspectiva de colocar a decisão a depender, de forma livre, consciente, séria e reflectida, essencialmente da própria pessoa doente. Mas, mesmo assim, só em determinadas condições que ainda as propostas de lei prevêem, condições essas às quais subjaz – deve subjazer -, ainda, o reconhecimento da vida como bem supremo.

Ou seja, a perspectiva de tal decisão não depender, como agora, essencialmente do Estado, da Lei.

Mas também não depender (e nisso tem o Estado especial responsabilidade) da falta de cuidados paliativos, de respostas técnicas, técnicas, organizacionais, sociais e políticas adequadas para esta condição e circunstâncias que as contextualizem (apoio médico e de enfermagem, físico, psicológico, humano, social), sendo pressuposto que estas continuem a ser o mais qualificadas, permanentes, generalizadas e universalizadas possível.

Ou, ainda, não depender, eventualmente, em condições de desigualdade, das possibilidades económicas da própria pessoa nessa situação (e daí da possibilidade ou impossibilidade de se deslocar a países onde tal restrição legal não existe). É claro que, ainda assim, a inquietação, a rejeição mesmo, dessa hipótese pode continuar (como continua) a restar como legítima para muita gente por outras razões, das quais se destacam, por exemplo, as religiosas.

Que, sem dúvida, são respeitáveis. Mas que, contudo, não podem ser consideradas razões que possam impedir o prosseguimento de este (ou qualquer outro) processo político-legislativo, seja em que domínio for (e aqui estamos num domínio biológico, quando muito sociológico ou filosófico, sobretudo de direitos humanos), até porque Portugal é um estado laico. Aliás, mesmo no âmbito religioso, a opinião não é totalmente unânime, pois que vieram (e continuam a vir) a público algumas posições de católicos(as) que, divergindo da maioria destes, apoiavam (como continuam a apoiar) os projectos de lei apresentados na Assembleia da República (AR).

Contrariamente ao que nalguns casos aconteceu por aí na rua (e até na comunicação social), onde se destacaram negativamente algumas posições menos dignas e respeitadoras (pelo menos naquilo que de dignidade e respeito é devido ao domínio em causa), o debate na AR (29 de Maio de 2018) decorreu, na generalidade, com elevação ética e democrática, permitindo desde já a expressão de convicções e posições sustentadas, notoriamente reflectidas e debatidas seriamente.

Quer as que se orientaram pelo “sim”, quer as que defenderam o “não”, quer, ainda, as que, assumidamente, optaram pela abstenção. As propostas acabaram por ser todas rejeitadas em sede da AR. Mas a questão volta agora, com a apresentação na AR pelos mesmos partidos de projectos legislativos que, no essencial, não diferem dos anteriores. O debate está já agendado para 20 do corrente mês.

Paralelamente, cresce agora um movimento que, por via de Iniciativa Popular de Referendo, visa desviar do processo legislativo na AR para referendo a decisão sobre a continuação da penalização ou despenalização da morte medicamente assistida a pedido.

Esta questão é uma das mais (se não a mais) “fracturantes” das opiniões das pessoas, até porque, sem prejuízo de haver que se ter em conta o debate social, religioso e político promovidos, mais do que de ordem partidária, religiosa ou ideológica (se bem que, no que respeita à vida de cada um e ao quanto ela se projecta e é influenciada pela sociedade, haja sempre algo de ideológico) é da ordem da consciência individual, tendo em conta as circunstâncias concretas que a determinam e contextualizam.

Isto põe em causa algumas posições que raiam a arrogância moral e ética, como se sendo mais humano e defensor da vida, quer por parte de quem defende a despenalização, quer por parte de quem defende a continuação da penalização.

É indiscutivelmente humano, de respeitar quem, perante alguém, eventualmente alguém Outro muito querido, em estado terminal e irreversível e em notório sofrimento duradouro e insuportável, colocando-se no lugar desse Outro, rejeita intimamente (e quem aqui escreve já experimentou esse sentimento) a hipótese de a morte desse Outro ser antecipada, mesmo por vontade deste. Não consegue, de modo algum, aceitar a perda de qualquer minuto, sequer fracção de segundo, da vida deste, mesmo sabendo o quanto essa fracção de segundo, o faz sofrer;

Mas também é sem qualquer dúvida humano, igualmente é de respeitar quem, na mesma situação, experiencia a confusão angustiante (e quem escreve também já sentiu essa confusão dramática) da alternância entre o sentimento anterior (o de rejeitar a antecipação da morte do doente, mesmo por vontade deste) com o de, intimamente, não conseguir impedir um sentimento de ansiar por essa antecipação da morte desse Outro que lhe é querido que tal lhe pede, face ao prosseguimento do indubitável sofrimento atroz e insuportável deste.

É que, afinal, a vida só é suportável (talvez mesmo se possa dizer que só é Vida) com um mínimo dos mínimos de prazer de (a) viver, vá lá, com uma pausa mínima das mínimas de ausência de sofrimento atroz, insuportável e irreversível.

Sim, reconheça-se que a vida só é minimamente suportável com um mínimo dos mínimos de esperança que ainda dure, nem que seja um segundo, mas nas condições anteriormente referidas. Mas, dir-se-á, com certeza que com toda a humanidade: “enquanto há vida, há esperança”.

Sim, mas se se diz, humanamente bem, “enquanto há vida há esperança”, também, com a mesma humanidade, poder-se-á dizer, mormente nestas circunstâncias limite, que só enquanto há um mínimo de esperança pode, verdadeiramente, haver Vida.

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