Um Ministério Público gago?

Um Ministério Público politicamente condicionável não leva a juízo factos com relevo criminal em que haja suficiência de indícios, pelo que os mesmos não serão sequer julgados.

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A procuradora-geral da República, Lucília Gago Nuno Ferreira Santos

A pedido da PGR, solicitação esta que, de forma tão concreta sobre o tema, ao que sei, surge pela primeira vez, o Conselho Consultivo (CC) proferiu o parecer n.º 33/2019, disponível no sítio do MP, ao que se julga por unanimidade, estranhamente sem o nome do(a) relator(a) e dos demais vogais que o integram, o que não se compreende.

Os motivos concretos mais próximos terão sido as divergências no “caso de Tancos”, embora se saiba que esta é porventura a questão mais disputada há décadas no seio do MP. O CC da PGR está previsto no Estatuto do MP (EMP), sendo, por inerência, presidido pela PGR e composto por vogais em maioria magistrados do MP (no mínimo 2/3), mas podendo igualmente acolher juízes e juristas de reconhecido mérito, propostos pelo PGR e aprovados pelo Conselho Superior do MP. Uma vez homologados, os pareceres do CC valem como “interpretação oficial” e, no caso de assuntos atinentes à “vida interna” do MP, praticando a PGR tal acto, através de directiva – como sucedeu –, deve ser sustentado por todos os agentes do MP.

A relação entre a circunstância de a CRP ter consagrado uma magistratura do MP hierarquizada e a autonomia dos seus magistrados tem sido alvo de numerosos estudos e debates. A título exemplificativo, veja-se o n.º 159 (2019) da Revista do MP, com posições diversas de dois distintos magistrados do MP. Também é conhecido que, muito em breve, o professor universitário Luís Fábrica, especialista em Direito Administrativo, a pedido do SMMP, apresentará um parecer sobre o tema e em que, ao que se sabe, conclui em sentido diverso. Terá sido mera coincidência?

É um dado indesmentível que o art. 219.º, n.º 4 da CRP determina que “os agentes do Ministério Público são magistrados responsáveis, hierarquicamente subordinados”, bem como que o seu Estatuto, no art. 14.º, estabelece poderes de “direcção e hierarquia”; que o art. 16.º, al. c) confere à PGR competências para “emitir as directivas, ordens e instruções a que deve obedecer a actuação dos magistrados do Ministério Público no exercício das respectivas funções”, sendo esses poderes desenvolvidos no art. 97.º, n.º 3. E logo aí se diz que a hierarquia tem limites, na vertente da autonomia interna (a externa concerne aos demais órgãos do Estado, em especial o Governo): o art. 100.º, n.º 3 dita que “[o]s magistrados do Ministério Público devem recusar o cumprimento de directivas, ordens e instruções ilegais e podem recusá-lo com fundamento em grave violação da sua consciência jurídica”, embora o n.º 6, al. b) do mesmo inciso estabeleça que “[n]ão podem ser objecto de recusa [a]s directivas, ordens e instruções emitidas pelo Procurador-Geral da República (como agora aconteceu), salvo com fundamento em ilegalidade”.

Perante este complexo quadro de difíceis equilíbrios, mantenho a minha convicção de que o principal problema está a montante, na autonomia externa do MP, a qual se não acha suficientemente garantida com o actual modelo de escolha do PGR: nomeação pelo PR, sob proposta do Governo. Este último – qualquer que seja – é permeável, ao menos em abstracto, a influências que podem fazer perigar essa mesma autonomia, pelo que deveria ser a AR, por maioria qualificada de 2/3 dos deputados, a propor o nome ao PR.

É verdade que um MP, moldado pelas suas atribuições constitucionais, necessita de uniformidade na sua actuação – e vou-me limitar ao processo penal –, sob pena de violação do princípio da igualdade e do recorte que, em 1976, se deu a este órgão que, nas suas vestes modernas, é filho do Liberalismo, remontando a um decreto de 1832.

Conheceu a instabilidade da 1.ª República, foi uma longa manus do poder ditatorial no Estado Novo e ganhou foros democráticos com a Revolução de 1974, entregando-se-lhe, para além do mais, a efectiva direcção do inquérito. Dito de outra forma, os juízes, em Penal, julgam aquilo em relação a que o MP entende acusar (sem prejuízo da competência dos assistentes nos crimes particulares).

Aqui está o busílis da questão: um MP politicamente condicionável não leva a juízo factos com relevo criminal em que haja suficiência de indícios, pelo que os mesmos não serão sequer  julgados. O MP é a mola propulsora do sistema penal.

Ora, a autonomia interna – na vertente em que os procuradores que têm fundadas razões de facto e de Direito, devidamente fundamentadas, para considerarem dada ordem de superior hierárquico gravemente violadora da sua consciência jurídica – impede, em meu juízo, que se possa caracterizar a relação intercedente dentro da estrutura do MP como de verdadeira hierarquia, mas sim em sentido impróprio. É certo que se não trata da independência que a CRP garantiu aos juízes, devido às suas funções, mas também não foi intenção do legislador constituinte que quem ocupa uma posição mais baixa nesta hierarquia imprópria não possa manifestar a sua discordância e que tal fique a constar do processo. Só assim se assegura que a garantia de respeito por uma autonomia técnica reconhecida aos magistrados do MP – ainda que limitada – não é letra morta.

Donde, de entre as conclusões do parecer do CC agora conhecido, a que me suscita mais dúvidas é a 10.ª, ou seja: “[A] emissão de uma directiva, de uma ordem ou de uma instrução, ainda que dirigidas a um determinado processo concreto, esgotam-se no interior da relação de subordinação hierárquica e não constituem um acto processual penal, não devendo constar do processo”.

A manifestação do controlo democrático do MP (como de qualquer órgão do Estado, em especial de um, como este, dotado de autonomia externa) pela própria comunidade deveria, penso, ter levado a conclusão contrária.

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