Não me pagam para isso

Não há, em geral, soluções fáceis para problemas difíceis. É o caso. Como combater tal desmotivação crónica se, por exemplo, estudos mostram que o efeito de uma promoção ou aumento salarial tende a começar a desvanecer-se, em termos de motivação, escassos dois meses após a respetiva atribuição?

Há fenómenos que não têm merecido a atenção dos media – e talvez nunca venham a merecê-la –, pois quando considerados isoladamente não têm os efeitos sociais nocivos atribuídos, por exemplo, ao denominado “Luanda Leaks”. No entanto, em termos agregados, também minam a sociedade, delapidando os seus recursos, ou limitando os proveitos da aplicação destes. Fenómenos baseados em comportamentos do tipo que designarei por “não me pagam para isso” empobrecem a sociedade, mas os seus efeitos são tão difusos que, no dia a dia, passam quase despercebidos.

Acredito que sejam transversais aos setores privado e público, mas são mais percetíveis neste último. Certamente o leitor já terá ouvido em primeira mão e ou experimentado os respetivos efeitos de alguém, no âmbito do exercício de funções públicas, autodispensar-se de determinada tarefa ou diligência com a justificação “não me pagam para isso”, embora “isso”, sem grande esforço de imaginação, pareça ao leitor componente das referidas funções. Mais subtil o comportamento, quando esse alguém não verbaliza tal justificação, mas arranja todo o tipo de desculpas para nem sequer a iniciar.

Tais comportamentos tendem a ocorrer a todos os níveis, desde o funcionário do fundo da cadeia hierárquica até a pessoas colocadas em posição superior. Têm como traço mais marcante um notório défice de zelo, mas sem que o agente-funcionário caia no extremismo de se colocar fora da lei ou dos regulamentos que enquadram a respetiva função. Um défice de zelo que, por exemplo, no caso dos professores, pode ser não preparar as aulas adequadamente (“não contam para a progressão na carreira”), não dar “feedback” aos alunos relativamente a ensaios e trabalhos submetidos para avaliação (“a nota atribuída diz tudo”) ou não assegurar um horário de atendimento para os atender fora do período das aulas (“os alunos nunca aparecem”).

Pode parecer, a partir destas ilustrações, que só existe na classe dos professores, e que todos os professores têm este tipo de comportamento. A resposta em ambos os casos é “não”. Há muitos professores que dão tudo pelos seus alunos, às vezes ultrapassando o que seria razoável deles esperar; por outro, há médicos, enfermeiros, funcionários administrativos, agentes da autoridade, que explícita, ou implicitamente, adotam no exercício das respetivas funções comportamentos do tipo referido.

Estes parecem retirados de uma “greve de zelo”, pois o agente-funcionário limita-se a fazer o estritamente necessário (ou até menos) para não poder ser acusado de incumprir nas suas funções. Apenas não é uma greve de zelo porque tal agente, ou as estruturas socioprofissionais que o enquadram, formalmente não declaram estar em greve.

Será fácil encontrar argumentação que possa ser aduzida para justificar tal tipo de comportamento. Refiro, a título de exemplo, do lado do agente-funcionário: remunerações congeladas há muitos anos e depauperadas por aumento “brutal” do imposto sobre o rendimento; progressão na carreira fechada, por falta de vagas, ou por via de critérios de avaliação enviesados relativamente à função; falta de reconhecimento pessoal, por parte dos responsáveis dos organismos, do trabalho produzido por cada agente-funcionário. Em suma, desmotivação pessoal.

As consequências económicas e sociais resultantes deste tipo de comportamento são enormes, em termos agregados, e tendem a cristalizar-se no tempo, por contraponto a uma efetiva greve de zelo, que tem um início e um fim.

Não há, em geral, soluções fáceis para problemas difíceis. É o caso. Como combater tal desmotivação crónica se, por exemplo, estudos mostram que o efeito de uma promoção ou aumento salarial tende a começar a desvanecer-se, em termos de motivação, escassos dois meses após a respetiva atribuição?

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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