Na linha da frente de Hong Kong, eles vivem a revolução do primeiro amor

Como o próprio movimento, o relacionamento de Tony e Wing é varrido por paixões e contradições: são 18 anos com convicção e incerteza, idealismo e fatalismo à flor da pele.

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Daqui a muitos anos, longe do jacto de canhões de água e do cheiro inconfundível do gás lacrimogéneo, eles olharão para trás, para o tempo dos protestos e lembrar-se-ão exactamente de como se sentiram.

Neste dia de Inverno, a marcha foi cancelada pela polícia. Dois adolescentes caminham na estrada, sob o brilho laranja de um viaduto. As luzes das carrinhas da polícia rodam à frente, mas, por enquanto, o espaço vazio da estrada pertence-lhes. O mundo parece totalmente parado naquele momento, existindo apenas o jovem casal numa rua de Hong Kong.

O rapaz ajeita o cabelo da rapariga, afasta alguns cabelos e beija-lhe a testa através do tecido que usa para proteger parte do rosto. A rapariga pega-lhe na mão coberta pela luva. Wing e Tony são dois jovens apaixonados de 18 anos. São manifestantes da linha da frente de um movimento pró-democracia cada vez mais violento que tem marcado a cidade por protestos nos últimos sete meses. Normalmente calmos e reservados, os dois juntaram-se a milhares de adolescentes, nos confrontos com a polícia de choque em toda a cidade de Hong Kong, a sua cidade natal transformada num campo de batalha entre o crescente domínio da China e o desejo das pessoas por mais democracia.

Mas mesmo em momentos extraordinários como são os dos protestos e das revoluções, há as experiências mais comuns como é a do primeiro amor.

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Histórias como a de Wing e Tony podem ser encontradas em toda a cidade, momentos privados escondidos no meio do caos público. Como o próprio movimento, o relacionamento deles é varrido pelas paixões e contradições dos jovens: cheios de convicção e incerteza, idealismo e fatalismo.

Em vez de tímidos primeiros encontros em que os braços roçam um no outro na escuridão de uma sala de cinema, Wing encontrou Tony com um capacete e uma máscara de gás e mostrou-lhe como usá-los. Em vez de enviar mensagens de texto, Wing envia os dados pessoais de Tony, incluindo o número de telefone do advogado, a amigos que estão monitorizando com segurança os protestos a partir de casa.

O casal, que pediu para usarmos os seus primeiros nomes por temerem ser identificados pela polícia, conheceu-se num campo de orientação durante o seu primeiro semestre na faculdade, no Verão passado. Então, o projecto de extradição, entretanto descartado, que abria a possibilidade de levar as pessoas de Hong Kong para o continente, em casos de justiça, já provocara uma onda de protestos em massa por toda a cidade. Wing acabara de terminar com o namorado, que se recusava a juntar-se a ela nos comícios e protestos, aos fins-de-semana.

Era um Verão abrasador, mas durante aqueles poucos dias no acampamento entre as árvores, os estudantes conseguiram esquecer a turbulência do lado de fora e retornar aos adolescentes que eram. Uma foto de Tony e Wing no acampamento mostra-lhes os rostos cobertos de corações e bigodes pintados. Numa das últimas noites do acampamento, os alunos brincaram às escondidas. O ar estava frio e os jovens gritavam enquanto fugiam. “Houve um momento em que estávamos a ser perseguindo e fugimos juntos”, recorda Wing. “Parecia que fugíamos à polícia de choque.”

No final, trocaram números de telefone. Wing guardou o número de Tony como “Rapazinho”, que em cantonês é um termo usado para os rapazes que são amigos. Tony guardou o número de Wing como “Kong Girl”, uma referência local para as raparigas mimadas.

No WhatsApp:

Wing: Estou quase a terminar as aulas.

Tony: Eu também tenho uma pequena pausa.

Wing: Não te digo onde estou.

Tony: Eu sei... estás no meu coração.

Wing: És parvo, não me chateies! Tchau tchau.

Tony estudou numa escola secundária só para rapazes e nunca teve uma namorada. Depois do acampamento, não parava de pensar em Wing e no seu grande sorriso. Ao contrário dele, ela é de origem social alta e ele supôs que ela seria arrogante. Mas, à medida que a foi conhecendo, foi mudando de opinião. Ficou surpreso e preocupado quando soube, através de amigos, que Wing participava nos protestos pró-democracia sozinha.

Tony foi a algumas manifestações, mas ficou desanimado com a repressão policial. “Não conseguimos mudar nada”, diz. Mas Wing era diferente. Ela já decidira fazer o que fosse preciso para combater a “invasão” da China. “Pensei que ela era realmente corajosa, não esperava que estivesse tão perto da linha da frente”, continua o rapaz.

No dia primeiro de Outubro, Tony soube que Wing ia sozinha à manifestação e decidiu juntar-se-lhe. Eram apenas amigos, confiando um no outro para manterem-se seguros. A estrada era um mar de adolescentes vestidos de preto, os rostos escondidos atrás do tecido pesado de balaclavas improvisadas. Estilhaços de vidro ficavam triturados debaixo das suas sapatilhas. Um polícia acabara de atirar sobre um jovem manifestante, à queima-roupa.

Wing agarrou a mão de Tony.

De repente, a polícia de choque disparou gás lacrimogéneo a um quarteirão de distância, avançando rapidamente. Tony olhou por cima do ombro e correu, nunca soltando a mão suada e escorregadia de Wing.

Alguns quarteirões depois, viraram um beco. Uma lavadora de pratos de meia-idade viu-os pela porta dos fundos do restaurante. “Entrem, entrem”, chamou-os para que entrassem. Os dois esconderam-se, sustendo a respiração enquanto as sirenes da polícia passavam. Percebendo que ainda estavam agarrados, Wing soltou a mão de Tony.

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Depois daquele dia, os dois começaram a participar em mais comícios e protestos juntos. Criaram uma nova rotina diária: Tony ia buscar Wing à escola ou ao seu part time de barista, depois encontravam um beco tranquilo, longe das câmaras de segurança para trocarem de roupa e vestirem o uniforme de roupas e máscaras pretas e misturavam-se na multidão.

Juntos, apagaram bombas de gás lacrimogéneo, desenterraram tijolos para outros manifestantes atirarem contra as autoridades e se esconderam-se atrás de barricadas improvisadas. Enquanto Wing estava sempre ansiosa para avançar para a frente, Tony era mais cauteloso, garantindo que mantivessem sempre uma distância de segurança da polícia de choque.

“Eu era mais impulsiva do que ele”, ri-se Wing. “No princípio, tinha medo que ele fosse daquelas pessoas que dizem aos outros para desistir dos protestos, mas ele não é assim.” Tony assente, revirando os olhos: “Se ela for demasiado longe, eu posso arrastá-la de volta.”

A única vez em que Tony passou algum tempo sozinho com Wing foi quando a acompanhou à estação de metro. Mesmo assim, ela estava constantemente a olhar para o telefone, a ver as actualizações sobre os protestos, fingindo ignorar as repetidas tentativas do rapaz de confessar os seus sentimentos por ela.

No WhatsApp:

Wing: Eu vou chorar.

Tony: Vai ficar tudo bem. Onde precisas de ir para apanhar a tua amiga?

Wing: Ao hospital.

Tony: Já chegaste?

Wing: Dizem que não é horário de visitas e não me vão deixar entrar. Há tantos polícias.

Tony: Vai ficar tudo bem. Eles explicaram alguma coisa?

Wing: Não. Acabei de socorrê-la. Ela pode sair depois de ver o médico.

Tony: Bom. Liga-me se precisares de alguma coisa.

Sem se deixar abater pela rejeição de Wing, Tony tentou novamente dizer-lhe como se sentia. Sabendo que ela gostava de estar junto ao mar, pediu-lhe para que se encontrassem num parque à beira-mar em Kwun Tong, uma área industrial com fábricas fechadas. Gaguejando um pouco, Tony tentou segurar a mão de Wing. Ela afastou-o, dizendo-lhe que eles não namoravam, por isso, não deveriam dar as mãos. “Está tudo a acontecer demasiado depressa, ainda não chegou a hora”, disse-lhe.

Algumas semanas depois, Wing enviou uma mensagem a Tony para perguntar por um dos seus amigos, que desaparecera após um protesto. Quando Tony não respondeu durante uma hora, Wing ligou-lhe pelo Facetime. Ela disse-lhe que o amigo havia sido preso. Tony começou a chorar, culpando-se por não se ter juntado a ele no protesto. 

“Eu só o vi chorar duas vezes. A primeira vez foi quando o seu amigo foi preso, a outra foi quando a sua avó perdeu a visão por causa de uma doença”, conta a rapariga.

Tony tinha participado em quase todas as manifestações, ao lado de Wing, mantendo-a segura, nunca questionando a sua decisão de participar, apesar dos riscos crescentes. Ao ver o estóico Tony fungando do outro lado do telefone, finalmente admitiu para si mesma que o via como mais do que um amigo.

“Queres ser meu namorado?”, perguntou-lhe timidamente.

“Sim, namorada”, respondeu-lhe, deixando de chorar. “Finalmente”, pensou para si.

Wing: Se ainda não dormiste, eu ligo-te mais tarde.

Tony: Liga-me quando quiseres, está tudo bem. Esta é uma linha directa 24 horas. Não consigo abrir uma loja de conveniência 24/7, mas posso ser um namorado de plantão 24/7.

Wing: LOL

Quando o Outono se transformou em Inverno, os protestos continuaram nas ruas de Hong Kong. Wing e Tony passaram uma semana inteira, em Novembro, em confrontos com a polícia perto da Universidade Politécnica de Hong Kong, que se tornou no local de impasse entre estudantes e polícias. No entanto, conseguiram ter alguns momentos de descanso para agirem como adolescentes normais. Em Dezembro, Tony conheceu a família de Wing e ele convidou-a para o jantar de aniversário da mãe.

Comendo o bolo de aniversário que Wing fez para a sua mãe, Tony sentiu, pela primeira vez, que tinha um namoro normal. A mãe gostou tanto de Wing que a convidou para voltar. Quando eles estavam a sair, a mãe puxou-o para o lado e disse-lhe para “mantê-la segura” pois sabia que os dois passavam a maior parte do tempo livre em manifestações.

A mãe de Tony só queria que o seu filho tivesse um emprego estável e uma vida calma, mas Tony e Wing não se imaginam a planear o seu futuro porque, para eles, é quase certo que um deles, ou talvez ambos, seja preso ou ferido nos próximos meses. “É como se não tivéssemos futuro agora”, diz Tony. “Hoje em dia, sair para protestar, parece dar à polícia mais oportunidades de nos prender.”

Wing atribui à sorte ainda não terem sido feridos ou presos. “Mesmo se eu estivesse ferido, ainda assim sairia, porque se não falarmos agora, será mais difícil falarmos no futuro”, reage ela. “Se não protestarmos agora, outras pessoas terão de lidar com as consequências”, acredita.

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Na véspera do Ano Novo, Wing e Tony deixaram as suas máscaras de gás em casa e subiram os degraus sinuosos de cimento de Garden Hill, no coração de Sham Shui Po, um bairro na Península Kowloon de Hong Kong. À meia-noite, uma pequena multidão reúne-se no topo da colina.

“10, 9, 8...”, a multidão começa a cantar.

“7, 6, 5, 4 ...” todos fazem a contagem decrescente.

À meia-noite, Wing grita o slogan que tem repetido nos últimos seis meses: “Liberdade para Hong Kong, a revolução do nosso tempo!”

Ao longe, milhares de janelas dos apartamentos brilham, como constelações distantes. Tony coloca o seu braço em volta de Wing e afaga-lhe o pescoço.

Mais tarde, perguntamos-lhe o que faria se Wing fosse presa, ele não responde de imediato, fica pensativo.

“Esperarei por ela”, responde. As sentenças podem chegar aos dez anos de prisão.

“A sério?” pergunta Wing.

“Sim.”

“Mas, e se eu perdesse um olho, um braço ou uma perna?”, insiste Wing.

“Se ela fosse presa, culpar-me-ia por não ter consigo protegê-la”, responde Tony à Reuters. “É muito triste ter encontrado meu primeiro amor durante os protestos.”

Tony pega na mão de Wing. O primeiro dia do ano é um dia raro, longe das linhas da frente. O casal planeou passá-lo num centro comercial, como fazem os amigos, como faziam antes dos protestos terem começado. Wing quer ir ver o filme Frozen. Com as cabeças juntas, riem de uma piada e seguem caminho, como dois adolescentes apaixonados.

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