Entre o verde e o silêncio, paisagem alentejana é palco para descobrir aves

Herdade da Contenda, em Moura, quer tornar-se referência no turismo de observação de aves, numa zona onde onde se podem avistar várias espécies raras e ameaçadas como o arbutre-preto.

Gazela de cauda branca
Fotogaleria
LUSA/MANUEL DE ALMEIDA
Fotogaleria
LUSA/MANUEL DE ALMEIDA
Fotogaleria
LUSA/MANUEL DE ALMEIDA
Fotogaleria
LUSA/MANUEL DE ALMEIDA

Sem perturbar a tranquilidade que caracteriza o território alentejano, o Orniturismo pretende “ocupar” a paisagem da Herdade da Contenda, em Moura, distrito de Beja, para observação de aves, destacando-se o abutre-preto, uma espécie “bastante rara” e difícil de avistar.

Em pleno Inverno, num dia bafejado pela presença de sol após dias de chuva, mas marcado pelo azar da ausência de espécies de abutre à vista, a equipa da Herdade da Contenda conduz uma visita guiada pelos 20 quilómetros de caminho de terra batida, percurso que atravessa a propriedade de cerca de 5300 hectares, desde o portão norte até à parte sul, feito com veículos de todo-o-terreno.

Numa paisagem tipicamente mediterrânica, no sudeste do Baixo Alentejo, em que a imensidão de verde se divide entre montados de azinho, mato e floresta, com cursos de água durante o percurso, desde as ribeiras do Murtigão à de Paes Joanes, avistam-se um cavalo puro-sangue lusitano e quatro veados a saltar livremente pela herdade.

Enquanto estes animais se deixam observar a olho nu, a maioria das espécies, em particular as aves, só se consegue vislumbrar através de binóculos de longo alcance e de telescópios, mantendo uma distância aproximada de 1.000 metros.

Sem uma contabilização precisa do número de espécies presentes na Herdade da Contenda, Eduardo Santos, biólogo da Liga para a Protecção da Natureza (LPN), aponta para existência de “muitas dezenas” de aves neste território, ressalvando que o projecto Orniturismo, co-financiado pelo programa de fundos comunitários Interreg Espanha-Portugal, beneficia directamente as aves necrófagas, que se alimentam de animais mortos.

Foto
Eduardo Santos, biólogo da Liga para a Protecção da Natureza LUSA/MANUEL DE ALMEIDA

Atribuindo um maior destaque ao abutre-preto, por ser “uma ave bastante ameaçada, bastante rara”, e que no Alentejo tem como único local de reprodução a Herdade da Contenda, Eduardo Santos diz que, nesta propriedade, gerida pela Câmara Municipal de Moura, há presença de outras aves — grifo, águia-real, águia-imperial, milhafre-preto, milhafre-real —, que “são maioritariamente espécies ameaçadas e com efectivos reduzidos” em Portugal.

“A abordagem é, precisamente, proteger e valorizar o património ornitológico, porque na prática é esse património que permite, depois, a exploração do turismo ornitológico e da visitação”, avança o biólogo da LPN, em declarações à agência Lusa, referindo que uma das componentes do projecto transfronteiriço é a melhoria e o aumento da disponibilidade alimentar para as espécies necrófagas, com supervisão veterinária.

Em Abril de 2017, aquando do início do projecto, que tem como principal beneficiário a Junta de Andaluzia, em Espanha, existiam quatro casais nidificantes de abutre-preto na herdade, registando-se “um aumento para mais do dobro”, com 10 casais nidificantes desta ave necrófaga identificados em 2019.

A Herdade da Contenda, que deve o nome à disputa entre Portugal e Espanha pelo território, ocupa uma área correspondente ao último troço da fronteira estabelecido entre os dois países. É “um dos melhores sítios” para a conservação, visitação e observação destas aves em Portugal, indica o responsável da LPN.

Potenciando o turismo ornitológico, um dos objectivos do projecto Orniturismo é “tornar este recurso não só teórico, mas colocá-lo em prática”, e permitir que traga para a região do Alentejo “mais-valias para os vários atores, nomeadamente os privados que, de uma maneira ou de outra, são agentes do turismo”.

Não haverá, porém, risco para a preservação do património ornitológico? Eduardo Santos assegura que o Orniturismo, na componente da observação de aves, assim como da fotografia da natureza, “quando bem desenvolvido, com os devidos cuidados, boas práticas e sem ter atitudes que perturbem as espécies, não tem qualquer contra-indicação”.

Foto
LUSA/MANUEL DE ALMEIDA

Equacionando ofertas adaptadas aos diferentes tipos de público, desde os menos entendidos em aves aos verdadeiros birdwatching (observadores de aves), o Turismo do Alentejo assume o papel de “ajudar a ligar os agentes turísticos, nomeadamente as unidades de turismo rural, à temática do turismo ornitológico”, mapeando os espaços de alojamento interessados em cativar este tipo de público.

Alargado a toda a região alentejana, com colaboração do território espanhol de Andaluzia, o projecto prevê três tipos de pacotes de oferta turística ornitológica, dos quais um safari para identificação de aves e de interpretação da paisagem, que representa “uma imersão no meio ambiente para as famílias, sobretudo as urbanas, que desconhecem muito das realidades da fauna do território”, descreve Maria Gantes, técnica do Turismo do Alentejo.

“No reino do abutre” é outra das ofertas, permitindo um dia de avistamento de aves necrófagas na herdade, com observação das espécies nas zonas de alimentação.

Para uma procura mais especializada, o Turismo do Alentejo está a estruturar, junto com a Andaluzia, “pacotes de Orniturismo de dois ou mais dias para um público mais especializado, mais na perspectiva de um público que vem à procura de uma ave específica”.

As visitas terão de ser sempre acompanhadas com guias qualificados, que tenham conhecimento e formação para identificar aves.

Esta nova vertente de oferta de emprego pode ajudar a que, na região do Alentejo, um território sobretudo rural, “haja outras alternativas, além da agricultura”, realça a técnica da entidade regional de turismo.

Sem conseguir explicar a paixão pela caça e o entusiasmo pela conservação, protecção e valorização do património ornitológico, João Cordovil, de 69 anos, impulsionador do projecto Orniturismo enquanto administrador executivo da Contenda, explica que há uma ligação “muito estreita” entre a actividade cinegética e a valorização ambiental, porque permite a alimentação das aves necrófagas.

“A alimentação que proporcionámos aos abutres resulta, exactamente, de animais que foram caçados”, frisa o economista de profissão, caçador e entusiástico das aves, que se prepara para se aposentar, mas promete continuar a visitar a herdade.

Depois de avaliação veterinária, a carne dos animais caçados, normalmente veado, muflão e javali, é vendida para consumo humano, enquanto as vísceras são aproveitadas para alimentação dos abutres.

Foto
Um abutre-negro na Herdade da Contenda, numa paisagem tipicamente mediterrânica MANUEL DE ALMEIDA/LUSA

“Esses predadores ocorrem em ambientes que são ecologicamente saudáveis, que têm boas condições de equilíbrio ambiental”, sublinha Cordovil, referindo que as aves necrófagas cumprem também o papel de limpeza da natureza quando encontram uma carcaça de animal morto na herdade, que funciona em regime aberto, o que representa um sistema de acesso directo do abutre ao consumo de animais.

Em termos de execução, com um prazo prorrogado até Setembro deste ano, o projecto está numa fase muito adiantada. Destaca-se a melhoria das condições para visitação com equipamentos específicos, desde a aquisição de telescópios à instalação de um observatório para ver a alimentação dos abutres.

Além disso, a Herdade da Contenda vai promover uma exposição, dispondo de um vídeo de grande qualidade para compensar quem tenha azar no dia da visita e não aviste determinadas espécies.

A exposição vai estar patente na antiga escola da herdade. Ao lado, existem dois espaços que vão ser transformados em centros de acolhimento a turistas, classificados como alojamento local.

“A partir de Março, Abril, Maio deste ano, estaremos em plenas condições de poder assegurar visitação a pessoas interessadas, na tal base de marcação antecipada, de grupos de dimensão adequada”, avança João Cordovil. Já decorrem visitas de contemplação do património ornitológico, mas num “esquema experimental”.

Com condições de tranquilidade invulgares, a Herdade da Contenda dispõe de um perímetro florestal de 3100 hectares, dos quais 1400 hectares de pinheiro-manso, assim como pinheiro-bravo, sobreiro, eucalipto e medronheiro. Na zona, “a presença humana é pouco intensa”.

Integrando a Rede Natura 2000 e as Zonas de Protecção Especial, a herdade conta com uma gestão integrada, procurando mostrar que “é perfeitamente possível” compatibilizar as actividades de pecuária, cinegética, protecção de valores ambientais e apicultura.

Além do projecto de Orniturismo, com um apoio financeiro de 26 mil euros, a Contenda beneficia de fundos comunitários noutros três projectos: Contenda Natur, Gestão Cinegética e Pro-Iberlinx - Protecção e Conservação do Lince Ibérico.

Sugerir correcção