Cientistas alertam para impacto dos incêndios de 2017 na água da barragem de Castelo de Bode

Investigadores concluíram que os incêndios de 2017 desvastaram cerca de 30% da bacia hidrográfica do Zêzere, o que poderá ter influenciar a qualidade da água que abastece a Grande Lisboa e grande parte da região Centro. A EPAL garante contudo que, até ao momento, não detectou alterações da qualidade da água.

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Miguel Manso

Os grandes incêndios florestais de 2017 podem afectar a qualidade da água da bacia hidrográfica do rio Zêzere, que alimenta a barragem de Castelo de Bode que, por sua vez, abastece a Grande Lisboa e grande parte da região Centro. No entanto, tal não deverá reflectir-se na água que os consumidores bebem, mas poderá obrigar a EPAL, que garante o abastecimento, a ter de gastar mais para tratar a água que consumimos. A EPAL garante que, até ao momento, não detectou alterações da qualidade. 

O alerta é de uma equipa de investigadores da Universidade de Aveiro e do Instituto Superior Técnico, que concluiu que cerca de 30% da bacia hidrográfica do rio Zêzere “foi devastada” por vários incêndios rurais em 2017. Estes incêndios afectaram sobretudo a zona central do país — onde se localiza precisamente o rio Zêzere — e fizeram 109 mortos. Arderam mais de 440 mil hectares de floresta e povoações, ou seja, quatro vezes mais do que a média registada nos dez anos anteriores, o que elevou “o risco de degradação da qualidade da água por causa da rápida e descontrolada erosão dos terrenos e consequente incorporação nas águas de sedimentos e nutrientes destas áreas ardidas”.

“O transporte de cinzas e a erosão não implicam só perda de solo. É também o que esse solo leva com ele até às linhas de água”, nota a investigadora Diana Vieira ao PÚBLICO. Segundo explica a cientista do Centro de Estudos do Ambiente e do Mar (CESAM) da Universidade de Aveiro, “o aumento da concentração de sedimentos e nutrientes poderá levar ao chamado algae bloom, que corresponde a uma rápida acumulação de algas na barragem”. Este processo, que é vulgarmente denominado de eutrofização, altera a qualidade da água. 

Como consequência, explica a investigadora, os custos de tratamento para fim de abastecimento de água potável serão mais elevados, ou a sua distribuição poderá ter de ser interrompida. “Ao nível do utilizador final, o que pode acontecer é, das duas uma: ou os custos aumentam ou pode haver cortes na distribuição de água. Nunca a instituição que gere a distribuição vai enviar água contaminada. O que pode acontecer é que os sedimentos das cinzas da área ardida vão até à albufeira e fiquem acumulados durante algum tempo”, que podem ser meses ou mesmo vários anos. 

Em resposta ao PÚBLICO, a EPAL garante, contudo, que “dispõe de um programa de controlo de qualidade junto à captação de água bruta destinada à produção de água para consumo humano na albufeira de Castelo do Bode cujos resultados, até à data, não evidenciaram alterações da sua qualidade”.

A empresa diz ainda que, após os incêndios, foi reforçado o programa de monitorização e nota que, em caso de necessidade, “dispõe de uma linha de tratamento da água na Estação de Tratamento de Água (ETA) da Asseiceira preparada para garantir, em permanência, os elevados padrões de qualidade da água por si fornecida”.

“Não fazemos nenhuma gestão pós fogo em Portugal”

Esta investigação está a ser realizada no âmbito da dissertação de doutoramento de Marta Basso, que é orientada por Diana Vieira. Este trabalho teve por base um trabalho de simulação hidrológica — realizado em colaboração com Tiago Ramos e Marcos Mateus, do Instituto Superior Técnico —, que avalia e prevê a qualidade da água, a erosão pluvial e o comportamento das águas subterrâneas. Teve como base a simulação hidrológica da bacia hidrográfica com a ferramenta SWAT (Soil Water Assessment Tool) para os quatro anos que se seguiram aos incêndios (2018-2021).

“As simulações demonstraram um aumento substancial na resposta hidrológica e erosiva, assim como um aumento na concentração de nutrientes, representando um potencial risco de eutrofização, deficiência de oxigénio e redução da biodiversidade”, que também têm impactos nos habitats aquáticos, “especialmente em peixes e comunidades de invertebrados”, notam os investigadores. 

“É bom que se tenha em conta que os cenários que nós fizemos não foram para cenários de precipitação intensa ou seca. Foi para uma situação normal”, sublinha Diana Vieira. O que quer dizer que os efeitos podem ser piores se se verificaram situações severas de precipitação, que poderão causar, por exemplo, o arrastamento de lamas e de sedimentos, para a albufeira.

Para a investigadora, é urgente identificar as áreas que estão com maior risco de erosão. “Devíamos tratar essas áreas de maior risco e precaver que não haja transporte de cinzas e sedimentos desses locais. O mais importante de tudo é monitorizar intensamente essas zonas críticas para que estejamos preparados, caso se verifiquem eventos. E monitorizar intensamente a qualidade da água à entrada da albufeira onde ela é captada”, nota.

“Nós não fazemos nenhuma gestão pós fogo em Portugal e acho que seria importante ter em conta que podem acontecer riscos destes”, alerta a investigadora. Ora isso passará, por exemplo, pela reposição do coberto vegetal nas zonas ardidas o mais rapidamente possível. “O essencial para prevenir um rasto de sedimentos é haver um coberto vegetal.”
Os investigadores recomendam a aplicação do mulching: “um acolchoado de resíduos orgânicos, a substituição da manta morta por uma manta artificial de resíduos florestais sobre o solo ardido. E isso já providencia uma boa redução desses arrastos”, explica a investigadora. 

“Isto não é rocket science. Isto já é feito nos Estados Unidos e na Galiza frequentemente. É só pôr uma camada de palha ou de resíduos florestais por cima das áreas ardidas, o que tem bastante eficiência”.

No passado mês de Outubro, foi conhecido um relatório do Observatório Técnico Independente — constituído para análise, acompanhamento e avaliação dos incêndios florestais e rurais no país — que recomendava precisamente a criação de uma empresa pública independente para a estabilização de emergência nos terrenos afectados por incêndios.

O observatório lembrava então que, após o fogo, os terrenos são deixados, “na maior parte das vezes, à regeneração natural”, com “o concomitante abandono aos processos erosivos”. E dava nota que, por essa razão, não há “tempo a perder após a destruição do coberto florestal, pelo que a intervenção no território tem de ser célere, o que obriga a concertação de esforços para a realização da estabilização de emergência”, frisando que era “urgente passar de medidas pontuais (…) para intervenções planeadas e mais abrangentes”.

“O ano a seguir aos incêndios foi muito razoável em termos de pluviosidade. Não deu para acontecer nenhuma desgraça, mas é importante perceber que o perigo não passou e que essas coisas vão acontecer no futuro e convém haver alguma gestão das entidades”, alerta a investigadora.

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