Embargo de obra na Gandarinha em Sintra foi desrespeitado duas vezes

Obra para transformação da antiga Casa da Gandarinha num hotel de cinco estrelas está embargada há quase um ano, mas os trabalhos continuaram. Embargo foi prolongado até Julho de 2020 e promotor incorre num processo-crime e contra-ordenação.

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Sebastião Almeida/Arquivo

O promotor da obra que está a transformar a antiga Casa da Gandarinha, em Sintra, num hotel de cinco estrelas desrespeitou o embargo decretado pela câmara por duas vezes. A situação, explica a câmara de Sintra ao PÚBLICO, “consubstancia crime de desobediência e como tal foi participada junto dos Serviços do Ministério Público da Comarca de Lisboa Oeste, correndo nos termos processo de inquérito”. 

O embargo foi decretado pela câmara de Sintra a 15 de Fevereiro de 2019, na sequência de uma fiscalização à obra, durante a qual foram “detectadas desconformidades com o projecto aprovado e licenciado”. No entanto, os trabalhos continuaram.

Numa visita à obra a 15 de Maio de 2019, os técnicos da autarquia depararam-se com “operários a desenvolver trabalhos” no local, “tendo sido levantado um primeiro auto de notícia”. Nesse documento, a que o PÚBLICO teve acesso, notam que, aquando do embargo, “o edifício do lado direito do principal” encontrava-se “em fase de estrutura de betão armado, do lado esquerdo do principal em alvenarias e rebocos e o edifício principal em pinturas exteriores e acabamentos interiores”. Na data do embargo, os técnicos verificaram que “prosseguiram os trabalhos, nomeadamente, nos vãos do edifício do lado esquerdo do edifício principal onde foram colocadas as caixilharias”.

Quase quatro meses depois, em nova visita à obra, os técnicos constataram novo desrespeito ao embargo. O promotor prosseguiu com os trabalhos “na área do lado direito do edifício principal, com a execução da parede de suporte e da rampa de acesso ao piso inferior, betonagem da zona no piso superior da caixa de escadas nessa mesma área devido, segundo informação na obra, por perigo de desmoronamento”.

A autarquia refere que foi então levantado “um segundo auto de notícia a 11 de Setembro de 2019, o qual foi encaminhado a 18 de Setembro para o referido processo-crime já a correr”. E esclarece ainda que, “em ambas as situações foram igualmente levantados autos de contra-ordenação, os quais foram remetidos para o referido processo-crime, dado estarmos perante factos que constituem simultaneamente crime e contra-ordenação”. A violação de embargo é punível com uma coima que pode ir dos 1500 aos 200.000 euros. 

Segundo a informação que conta no processo a que o PÚBLICO acedeu, o advogado do promotor, a Sociedade de Construções Quinta do Bispo, ainda alegou que a vigência do embargo tinha terminado, no entanto o presidente da câmara prorrogou-o até 27 de Julho de 2020. 

Chumbo da DGPC

A história da antiga Casa da Gandarinha estende-se por décadas e tem sido marcada por avanços e recuos no processo, muito contestado por alguns sintrenses. Foi em Setembro de 2005 que foi aprovado, pelo então presidente Fernando Seara, um projecto que previa a recuperação da fachada da casa do século XIX e a construção de “blocos contemporâneos” para quartos, serviços e estacionamento.

Em Junho desse mesmo ano, o então Instituto Português do Património Arquitectónico (Ippar) emitiu um parecer de aprovação condicionada. A aprovação do projecto por esta entidade dependeria da realização de estudos hidrogeológicos e acompanhamento arqueológico, já que a obra implicaria escavações e movimentações de terras numa zona classificada. Certo é que, entre processos judiciais, sucessivos pedidos de prorrogações dos prazos para a emissão do alvará de construção, a obra só arrancou em 2017 e sem que os estudos pedidos pelo Ippar tivessem sido feitos (foram feitos depois, já com a obra em andamento). 

Depois de a obra ter sido embargada, em Fevereiro do ano passado, o promotor apresentou um pedido de licenciamento das alterações feitas relativamente ao projecto inicial. Deu entrada nos serviços camarários a 25 de Março de 2019 e foi encaminhado para a Direcção Geral do Património Cultural (DGPC) para ser apreciado, uma vez que os terrenos da antiga casa da Gandarinha se inserem na paisagem cultural de Sintra, classificada como Património Mundial da Humanidade pela UNESCO, e estão abrangidos pela Zona Especial de Protecção do Castelo dos Mouros, Cisterna e Igreja de Santa Maria.

Conforme noticiou o PÚBLICO no início de Setembro, o projecto mereceu o chumbo deste organismo. Os técnicos apontavam então omissões e incongruências na informação prestada pelo promotor em relação ao projecto aprovado, notando mesmo que, “em algumas soluções”, se verificava “um agravamento dos impactos do projecto no conjunto classificado”.

Os técnicos notaram ainda falhas de comunicação desde o início do projecto. Segundo escreveram, a DGPC “não teve conhecimento da versão do projecto aprovado pela Câmara Municipal de Sintra em 30/09/2005”, pelo que “não é possível aferir da sua compatibilidade com o despacho exarado no processo do IGESPAR” em 06/06/2005. E levantaram outra questão relativa à área total de construção (excluindo estacionamento e área técnica) aprovada, que disseram não corresponder ao projecto de Abril de 2005 — o que foi aprovado pelo então Ippar —, o que poderá indicar que está a ser ocupada uma área que não foi sujeita a aprovação.

“Perante tal parecer competia ao requerente proceder à junção de vários elementos considerados em falta, tendo procedido a uma junção de documentos, aguardando-se a emissão de parecer por parte da DGPC”, nota agora a autarquia.

Está neste momento a decorrer no Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, uma acção — da qual ainda não se conhece uma decisão — que visa verificar a legalidade da revogação da caducidade do licenciamento pelo presidente da câmara de Sintra, permitindo que a obra avançasse. O licenciamento da obra foi, na verdade, deferido em 2011, mas a obra não avançou. Depois de um segundo pedido de prolongamento do prazo para emissão do alvará, o então presidente da câmara indeferiu esse pedido, em Julho de 2013. 

No entanto, já com Basílio Horta na presidência do município, essa decisão de 2013 foi revogada, em Abril de 2014, com base numa informação que atestava o “interesse público” da reabilitação. Sobre este assunto, o município refere agora apenas que “tem prestado os esclarecimentos e informações solicitadas sobre todas as matérias relacionadas com esta temática” e remete mais esclarecimentos para o Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra. 

O PÚBLICO tentou contactar o promotor mas não obteve resposta.

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