Os empregados de Isabel

Ninguém nos tira também a vergonha de sermos vistos como um país de empregados da mulher que mais roubou um país africano. Por acaso também era a mais rica.

Também ao estilo trumpiano, dois dos cerca de 30 tweets de Isabel dos Santos no domingo fizeram-me lembrar os editoriais do jornal do regime de José Eduardo dos Santos ao longo dos últimos 20 anos. Está lá tudo: os malvados da SIC e do Expresso que levaram a que o grupo cortasse relações e a televisão não fosse emitida em Angola durante largos anos.

O apelo a que a relação de amizade entre o povo angolano e português não ficasse afetada pelo interesse obscuro desta perseguição colonialista e racista à sua pessoa é hoje uma adaptação dos portugueses que ousavam criticar publicamente o roubo do clã dos Santos ao país e que rapidamente faziam os headlines do Jornal de Angola. Apelidavam-nos de intelectuais saudosistas do tempo colonial, entre outras coisas que agora pouco interessam. Mas os verdadeiros corajosos estavam, como sempre estão neste tipo de realidades, em Angola. Além do povo e de Rafael Marques, importa nomear muitos dos que foram perseguidos e que procuraram ser silenciados sem sucesso.

É por isso que as revelações que vieram a público através do excelente trabalho do consórcio internacional de jornalistas só espantam pelos números do saque estatal e não pelos factos per si. Desde 2006 que esses não devem surpreender qualquer português minimamente atento.

O que surpreende é como Isabel dos Santos e as equipas que tão mal a aconselham aprenderam muito pouco. Se conseguirem arranjar tempo para ler os jornais americanos, ingleses, franceses, espanhóis e alemães com fontes próprias, muitas bem menos simpáticas do que as portuguesas e oriundas de outras publicações deste consórcio internacional de jornalistas, talvez entendam que a narrativa estapafúrdia que apresentam no Twitter e nas entrevistas de Isabel dos Santos adensará cada vez mais a falta de apoio popular. Em suma, da mesma forma que é possível acumular fortuna sem que se adquira grande sabedoria, também é possível viajar bastante sem que se saia de uma bolha muito pequena.

Mas sempre foi assim para o exterior neste clã: os seus amigos eram os amigos de Angola e os olhos e ouvidos só existiam para Portugal. Constata-se algo óbvio e que atropela esta tese: os amigos queriam lá saber do país e os empregados portugueses, como nenhum outro país por esse mundo fora, estenderam uma passadeira a alguém muito pouco recomendável. Isso é o que mais custa para quem há mais de dez anos adivinhava que mais cedo ou mais tarde todo esse papel se viraria contra o interesse de ambos os países. Além de lavandaria, conforme referia ontem Ana Gomes, Portugal serviu em exclusivo como absolvedor de um regime ditatorial e nepotista.

Nos próximos dias provavelmente continuaremos a assistir à revelação dos nomes de todos esses empregados portugueses de Isabel dos Santos. Desde políticos, banqueiros, empresários, advogados e consultores de comunicação, através dos Luanda Leaks. Assistiremos a muitas falhas de memória e à condenação hipócrita da própria Isabel dos Santos por parte de um ou outro.

Só que a cumplicidade de certa suposta elite portuguesa dificilmente será esquecida por João Lourenço e as autoridades portuguesas, que também respondem perante a União Europeia, não a ignorarão por isso mesmo.

Ninguém nos tira também a vergonha de sermos vistos como um país de empregados da mulher que mais roubou um país africano. Por acaso também era a mais rica.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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