Governo russo demite-se para que Putin mude a Constituição

Horas antes, Putin tinha defendido que o Parlamento passasse a nomear o governo. Em cima da mesa está o futuro político do próprio Putin, cujo mandato termina em 2024.

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Reuters/SPUTNIK

O primeiro-ministro russo, Dmitri Medvedev, apresentou esta quarta-feira a demissão ao Presidente, Vladimir Putin. O chefe de Estado aceitou o pedido e escolheu um dirigente praticamente desconhecido para chefiar o Governo. A decisão é o primeiro vislumbre daquilo que será a política russa após o fim do quarto mandato de Putin como chefe de Estado.

O anúncio foi feito numa declaração televisiva em que Medvedev apareceu ao lado de Putin, que lhe agradeceu pelo desempenho no cargo. Medvedev foi nomeado para “número dois” do Conselho de Segurança, um órgão que aconselha a presidência em questões de segurança nacional presidido por Putin.

Medvedev justifica a demissão com a necessidade de dar espaço a Putin para levar a cabo as alterações constitucionais que o Presidente defendera horas antes no seu discurso sobre o estado da nação. Não foram dados muitos pormenores sobre que tipo de alterações estão em cima da mesa, mas Medvedev referiu mudanças no “equilíbrio de poder”, segundo a agência estatal TASS.

“Neste contexto, é óbvio que nós, enquanto Governo, devemos garantir ao Presidente do nosso país a capacidade para tomar todas as decisões para isto”, acrescentou Medvedev.

Putin tinha defendido que o Parlamento (Duma) devia passar a poder nomear o primeiro-ministro e a maioria dos elementos do governo. “O Presidente seria obrigado a nomeá-los e não poderia rejeitar os candidatos confirmados pelo Parlamento”, afirmou Putin, durante o seu discurso esta manhã. Em cima da mesa está também um referendo nacional para que as alterações constitucionais sejam votadas, algo que não acontece desde 1993, quando a Constituição foi aprovada.

Futuro de Putin

A proposta de Putin, com 67 anos, está intimamente ligada ao seu futuro político. O actual mandato presidencial termina em 2024 e, de acordo com a Constituição, Putin não pode concorrer a um terceiro mandato consecutivo. A aproximação desta data abriu muita especulação sobre o que se iria seguir. Em 2008, quando Putin atingiu o mesmo limite, a solução encontrada para que mantivesse o poder foi a de passar para primeiro-ministro, tendo Medvedev assumido a presidência durante um mandato – a partir do qual Putin regressou ao cargo.

A partir de agora, abrem-se várias perspectivas para o que se irá seguir na próxima era da política russa. A primeira incógnita era saber quem seria o novo primeiro-ministro e se a sua nomeação podia ser interpretada como a escolha de um potencial sucessor de Putin. Poucas horas depois da demissão de Medvedev, foi conhecido o nome apresentado pelo Presidente: trata-se de Mikhail Mishustin, o presidente da Agência Federal Tributária.

A escolha foi recebida com surpresa por se tratar de um dirigente muito pouco conhecido. Pelo caminho ficaram nomes mais sonantes como o do presidente da Câmara de Moscovo, Serguei Sobianin, o actual ministro da Economia, Maxim Oreshkin, e o ministro da Energia, Alexander Novak. A Duma deverá aprovar o nome de Mishustin já esta quinta-feira, segundo a RIA Novosti.

Duma mais forte

As alterações constitucionais propostas mostram uma intenção de enfraquecer o cargo de Presidente, em favor da Duma, onde há actualmente uma esmagadora maioria de deputados do Rússia Unida, o partido no poder (341, num total de 450). O próprio Putin reconheceu que a sua proposta “iria aumentar o papel e o significado do Parlamento nacional, dos partidos parlamentares e a independência e responsabilidade do primeiro-ministro”. No entanto, ressalvou que “a Rússia deve permanecer uma República presidencial forte”.

A demissão do Governo “simboliza o reiniciar do sistema político” russo, disse à RT o director do Instituto de Estudos Políticos e Sócio-Económicos de Moscovo, Dmitri Badovski.

A proposta de alteração constitucional, que inclui também um reforço das competências dos governadores regionais, foi recebida com cepticismo pelos críticos do regime. “O principal resultado do discurso de Putin: os idiotas (e/ou ladrões) são todos aqueles que disseram que Putin iria sair em 2024”, afirmou Alexei Navalni, o principal rosto da oposição ao Kremlin.

“É óbvio para todos que tudo isto serve exclusivamente para Putin governar por toda a sua vida”, afirmou o dirigente da oposição, Leonid Volkov, através de uma publicação nas redes sociais. Dmitri Gudkov, outro político crítico do Kremlin, descreveu a demissão do Governo e a proposta de alteração constitucional como “um golpe constitucional”, citado pela Reuters.

A directora do canal financiado pelo Kremlin RT, Margarita Simonian, disse, por sua vez, que “efectivamente o poder na Rússia está a dirigir-se para o ramo legislativo”.

O que fará Putin após 2024 é outra das grandes incógnitas que começa agora a ser respondida. O enfraquecimento da figura do Presidente parece indicar que Putin, no poder desde 1999, não pretende desafiar a limitação de mandatos, antes preferindo uma transferência da fonte de poder e legitimidade para o Governo e para o Parlamento. “O Presidente não será uma figura tão dominante [como Putin], portanto a nomeação de um sucessor não será uma decisão tão crucial”, diz ao Guardian o analista do Centro de Tecnologias Políticas de Moscovo, Alexei Makarkin.

Uma hipótese que ganha força à luz do novo arranjo constitucional é a de, após 2024, Putin assumir novamente o cargo de primeiro-ministro, que passa a ver o seu poder reforçado. Outro cenário antecipado pelos analistas é o de Putin passar a chefiar um novo órgão, designado como Conselho de Estado, que lhe permitisse manter-se próximo do centro das decisões do Kremlin. Actualmente, o Conselho de Estado reúne-se apenas de forma temporária, mas no seu discurso, Putin mostrou-se favorável à ideia de o tornar permanente e conferir-lhe importância constitucional, num claro sinal de que o seu futuro poderá passar por aqui.

Desafios

Apesar de ser muito cedo para que seja possível avaliar o que irá mudar na política russa, a decisão de Putin traz consigo vários desafios e abrem um período de moderada incerteza. Em 2012, quando regressou à presidência após um mandato como primeiro-ministro, a jogada foi recebida com os maiores protestos anti-governamentais das últimas décadas, para além de ter marcado um ponto de viragem nas esperanças do Ocidente de que o regime russo estaria a aproximar-se do modelo democrático. Putin continua a granjear um elevado índice de popularidade, mas é provável que a percepção de que se deseja eternizar no poder volte a merecer uma forte oposição.

As mudanças constitucionais em cima da mesa também vêm mudar as regras do jogo político. Se até agora, o presidencialismo foi a regra, a transferência do poder efectivo para o Parlamento irá conferir às eleições legislativas uma importância inédita. No próximo ano, há eleições para a Duma que passam a ser determinantes para o futuro do regime.

O sistema consolidado por Putin nas últimas duas décadas passou a estar dependente quase totalmente da sua popularidade pessoal. A partir de agora, essa popularidade terá de se reflectir no seu partido, o Rússia Unida, que nos últimos tempos se foi tornando sinónimo de corrupção aos olhos de muitos russos. A reforma do sistema de pensões no ano passado representou um ponto baixo no apoio ao partido e ao Governo, levando Putin até a prescindir do Rússia Unida nas eleições presidenciais de Março.

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