Foi bom de ver: Madonna no Coliseu como se estivesse em casa

Fez do Coliseu a sua casa e convidou-nos a entrar nela. Trouxe as filhas, sentou-se entre o público, deambulou no final entre ele, contou histórias, umas vezes olhos nos olhos, outras com as coreografias, as palavras políticas e o sentido de espectáculo que se lhe reconhece desde sempre. Foi assim na noite de terça-feira. Será assim ainda mais seis noites.

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Cantou em português. Explicou porque é que Lisboa a inspirou. Interpretou fado e mornas. Deu dignidade às batucadeiras de Cabo Verde e restantes cúmplices que conheceu em Portugal, de Gaspar Varela a Dino d’ Santiago, que se lhe juntou em palco, tecendo ligações entre a cidade do fado com a Lisboa pós-colonial. Levou o público ao longo de mais de duas horas e meia em viagem por cidades, sonoridades e discos, de Like a Prayer dos anos 1980 a Madame X de 2019, que constituiu o centro do espectáculo.

E fê-lo sem facilitismos e histrionismos. Sem bandeiras de Portugal e juras de amor eterno. Com respeito, emoção e vulnerabilidade. Por vezes coxeando um pouco, sintoma de que ainda não recuperou de uma lesão numa das pernas que a levou a cancelar algumas datas da digressão americana. A existir alguma tentativa mais forçada de alcançar a empatia do público, só se for quando mostrou saber calão português, soltando umas “caralhadas”.

A sensação com que se ficou é que fez do Coliseu a sua casa e convidou-nos a entrar nela. Trouxe as filhas, sentou-se entre o público, deambulou no final entre ele, contou histórias, umas vezes olhos nos olhos, outras com as coreografias, as palavras humanistas e políticas e o sentido de espectáculo que se lhe reconhece desde sempre. Que pedir mais? É provável que muitos admiradores gostassem de ter ouvido mais êxitos. Mas esse é apenas sintoma de que ela resolveu desafiar-se, concebendo uma digressão diferente das que já se lhe viram, arriscando um novo tipo de encenação.

Lisboa, “segunda casa" 

Quem a foi vendo em palco ao longo dos anos sabe que é capaz de produções faustosas. Em Lisboa, sem renunciar por completo aos valores do entretenimento, viu-se um musical, ou um teatro musical, elegante e rigoroso e uma cantora na posse de todos os seus recursos vocais, sendo ao mesmo tempo capaz de recriar canções do passado com mestria (assinalável a revitalização de Vogue, ou a forma como nos recordou que há muito aborda a música latina, com La isla bonita, antes da vaga actual) e dar novo sentido aos temas de Madame X. As canções desse disco ganharam nova vida em palco, como se as tivesse criado a pensar nisso. E é provável que assim tivesse acontecido.

Como não se cansou de dizer, tudo começou em Lisboa, a sua “segunda casa”, como classificou. Foi aí que germinou o álbum e o presente espectáculo. Natural a aura de acontecimento que se sentia antes do início, com muita gente, a maior parte na meia-idade, a auto-encenar-se com motivos alusivos à cantora e com muitos estrangeiros entre o público, em particular nas filas dianteiras da plateia, onde os bilhetes eram mais caros. A opção cénica foi ocupar o espaço com cadeiras, mas como seria de esperar a assistência raramente permaneceu sentada.

Antes do início propriamente dito, alguns dos músicos que conheceu em Lisboa e que participam na digressão (Gaspar Varela na guitarra portuguesa, Miroca Paris na guitarra, Jéssica Pina no trompete e Carlos Mil-Homens na percussão) colocaram-se à boca de cena, tocando versões acústicas de canções dela, misturadas com outros temas, como se tentassem recriar o ambiente descontraído e de proximidade que diz ter encontrado em Lisboa.

Depois o concerto seguiu o guião da digressão americana, com um texto do escritor e activista americano James Baldwin, a que regressaria mais tarde, a ocupar o grande ecrã com a frase “os artistas estão aqui para perturbar a paz” a sobressair, para entrarmos de seguida no espectáculo com God control e Dark ballet, do último álbum, instituindo de imediato o ambiente.

“Estão ansiosos? Não estejam”

Os quadros cénicos são precisos, com um naipe de performers a rodeá-la, enquanto a electrónica dançável do primeiro tema faz toda a gente saltar das cadeiras e uma mensagem paira: é preciso reinventar a democracia. Em Human nature e Express yourself é a autonomia, a liberdade individual e o feminismo que é celebrado, com as filhas gémeas (Estere e Stelle) a entrarem também em cena.

Antes já havia dito que estava feliz por estar de regresso, para poder mostrar o que a havia inspirado na cidade, ao mesmo tempo que provocou a assistência por ninguém poder utilizar telemóvel — à entrada, como já se sabia, foram colocados numa bolsa. “Estão ansiosos? Não estejam. É uma forma de comunicarmos melhor”, lançou, tirando um auto-retrato, que viria a ser negociado e leiloado por ela, sendo entregue a um espectador espanhol, que pagou mil euros para a organização sem fins lucrativos Raising Malawi.

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Por vezes entrevemos a Madonna cortante e provocadora de outros tempos, como quando conta uma anedota sobre homens com pénis pequenos em que Donald Trump parece ser o principal visado, o mesmo acontecendo em American life, durante a qual o conflito EUA-Irão não é esquecido, sendo apontado o dedo a “uma guerra inventada” pelo líder americano que não serve a ninguém. E depois existe a música, como Vogue, uma das melhores da noite, resistindo ao tempo, com a encenação visual, tão sofisticada quanto simples, com o palco repleto de figuras femininas imaculadamente loiras.

Palco às Batukadeiras

Mas o momento maior é Batuka, com o colectivo de mulheres cabo-verdianas Batukadeiras de Portugal, a entrar em cena, vindas da plateia, para um momento de grande imponência sonora, mantendo-se em círculo, por entre vozes e percussões que ecoam pelo espaço, numa conjugação electroacústica majestosa. Há palavras afectuosas para as mulheres que conheceu há quase três anos, com Madonna a ceder-lhes respeitosamente o palco.

É o quadro cénico onde Portugal é mais evocado, com o design do espaço a lembrar uma casa de fados, e com ela fazendo questão de contar a história da sua presença em Lisboa, a cidade para onde se mudou, escoltando o sonho de um dos seus filhos (David Banda) em ser jogador de futebol. “Foi ele que me fez sair da minha zona de conforto e ainda bem”, disse. Contou que, inicialmente, se sentiu só. A Comporta, o bacalhau ou o vinho do Porto seduziram-na, mas faltava-lhe a vida cultural. Não conhecia ninguém. Depois incentivada pela única amiga que conhecia, a colombiana Victoria Fernández, começou a sair.

Primeiro nas Lisbon Living Room Sessions — “É incrível o que vocês têm aqui! Como é possível não existir nada assim nos EUA?”, exclamou — e depois por casas de fado e outros locais, onde foi tomando contacto com a realidade artística e intercultural da cidade, guiada por músicos como Dino d’ Santiago. Claro que o fez sempre de forma protegida. Como nos dizia o próprio Dino d’ Santiago há dias, “ela teve acesso ao melhor do que a cidade lhe podia dar, a essa mistura, a músicos maravilhosos”. A sua leitura da realidade será parcelar, passou ao lado de tensões e conflitualidades, mas existiu nela uma vontade de compreender e de se envolver. E isso sentiu-se no Coliseu, até na forma elevada como dá espaço a que brilhem todos os que com ela privaram, ou como cantou por diversas vezes em português, por mais imperfeito que possa soar.

Foi isso que aconteceu na interpretação de Fado pechincha, o clássico imortalizado pela entretanto falecida Celeste Rodrigues, para quem teve palavras de grande reconhecimento, ou no tema seguinte, Killers who are partying, com a guitarra portuguesa de Gaspar Varela em evidência, enquanto ela vai soletrando que “O mundo é selvagem / O caminho é solitário”. E depois existe Sodade, de Cesária Évora, cantada na companhia do “rei do funaná”, como apresentou afectuosamente Dino d’ Santiago, o convidado-surpresa, com toda a gente a soletrar em uníssono o refrão.

Nova Iorque, anos 80

Mas nem só de Lisboa viveu o concerto. Desde o início, quando mergulhou na Nova Iorque multicultural dos anos 1980, que as misturas e as mestiçagens lhe interessaram. A velha La isla bonita, de 1986, não destoa da nova Medellín, com os ambientes lascivos e latinos em destaque, enquanto em Extreme Occident, é a própria ideia de viagem, interna e externa, que é evocada, numa versão bem mais estimulante do que aquela que consta no último álbum.

Às vezes empunha a guitarra, outras senta-se ao piano, e em Frozen observamo-la apenas em silhueta, num dos momentos mais minimalistas e conseguidos da noite, vendo-se a filha Lourdes Leon a dançar projectada na tela gigante. Por vezes desce até ao público para delírio deste. Senta-se ao lado de um espectador alemão. Fala com ele. Provoca-o. Ele diz que é médico assistente. Ela partilha uma cerveja com ele e tenta perceber porque estava vestido de uma forma exótica, com ele a levantar-se para ser visto por todos. Há interacção. Momentos de distensão. Comunicação próxima. “Até vos consigo cheirar”, ironizará às tantas, como acontece ao longo do serão, arrancando risos.

Come alive, outra do último álbum, acaba com Madonna ladeada por um numeroso grupo de mulheres, apontando para o infinito, forma de mostrar que a música, e a arte, põem em causa, mas também geram, frutificam, criam novas possibilidades, transmitirá ela. Em Future e Crave imergimos nos novos ritmos urbanos e, mais uma vez, fica a impressão de que as novas soluções sonoras ensaiadas ao vivo geram bons resultados. Para o final ficaram Like a prayer, servida na escadaria em X que compôs o cenário, e I Rise.

No final irrompeu pelo meio da plateia, seguida de toda a trupe, gritando “power to the people”, enquanto em fundo se vislumbram imagens contra o uso de armas, de solidariedade com os imigrantes e de celebração dos direitos LGBTQ+, numa exaltação do colectivo, do estar em comunidade. Por uma noite Madonna criou a sensação de ter estado no meio de nós. Deixou-nos entrar na sua casa. Uma casa global, como sempre foi, mas agora também portuguesa, com certeza. 

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