Histórias que se cruzam: Sinaga, o violador de homens, e Ângelo Fernandes, o activista que defende as vítimas

O indonésio que se acredita ser “o violador mais prolífico de sempre” do Reino Unido, Reynhard Sinaga, foi condenado a prisão perpétua por violar pelo menos 48 homens. Ângelo Fernandes, fundador da organização Quebrar o Silêncio, chegou a conhecer o agressor, e explica porque é que o caso não é incomum.

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Ângelo Fernandes, activista pelos direitos dos homens vítimas de crimes sexuais Nuno Ferreira Santos
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Reynhard Sinaga, de 36 anos GREATER MANCHESTER POLICE

É uma realidade pouco discutida e frequentemente negada, mas muitos homens também são vítimas de violência sexual. Esta semana foi notícia em todo o mundo o caso de Reynhard Sinaga, o indonésio que se crê ser “o violador mais prolífico de sempre” do Reino Unido, e que foi condenado na segunda-feira a uma pena de prisão perpétua por violar pelo menos 48 homens. A história de Sinaga cruza-se precisamente com a de Ângelo Fernandes, fundador da organização Quebrar o Silêncio, que defende homens vítimas de crimes sexuais. O português de 38 anos, técnico de apoio à vítima, chegou a conhecer pessoalmente o violador.

Foi em 2014 que Ângelo Fernandes rumou a Manchester, no Reino Unido, após uma oferta de emprego. Foi lá que, meses após a chegada, conheceu Sinaga. O português era voluntário numa associação (cujo anonimato é salvaguardado por risco de ser associada ao caso de Sinaga) de apoio a homens homossexuais e bissexuais em situação de vulnerabilidade — como, por exemplo, casos de homens homossexuais que se assumem tardiamente ou homens vindos de países onde a homossexualidade é punida com a morte —, grupo que Sinaga frequentava.

“Estive em Manchester três anos e, durante esse tempo, decidi fazer voluntariado num grupo para homens vulneráveis, no qual o Sinaga participava”, conta ao PÚBLICO. Tratava-se de um grupo de ajuda mútua, cujas sessões contavam regularmente com a presença do indonésio. “O Reynhard participava nesse grupo porque ele tinha vindo da Indonésia e estava a estudar em Manchester. Em teoria, utilizava este grupo para socializar. Mas veio-se a perceber, mais tarde, que era um dos sítios onde ele poderia, eventualmente, identificar possíveis vítimas”, explica o português.

Segundo Ângelo Fernandes, Sinaga “apresentava-se de forma bem-disposta, era um homem sociável e amigável”, ao qual ninguém associaria uma “ideia estereotipada do violador como alguém asqueroso, vil ou duvidoso”.

Mas, de acordo com o português, tudo foi pensado a priori. “A forma como ele se apresentava nestes circuitos era uma estratégia”, garante Ângelo Fernandes, sublinhando que o facto de se apresentar “como uma pessoa amigável e acessível é uma estratégia para que os outros homens e pessoas não o identifiquem como alguém verdadeiramente perigoso” e para que não tenham “motivos para desconfiar”.

“A verdadeira natureza de Sinaga”

Em tribunal, na passada segunda-feira, a juíza Suzanne Goddard classificou Reynhard Sinaga como “um predador sexual em série cruel”, “um indivíduo altamente perigoso, ardiloso e desonesto”, sem remorsos e que parecia estar, na verdade, “a desfrutar do processo de julgamento”. Essa, sim, é a “verdadeira natureza de Sinaga”, sublinha Ângelo Fernandes, destacando o poder de manipulação do agressor. “As pessoas precisam de perceber que não é fácil identificar um violador só pela forma como ele se comporta entre amigos ou socialmente”, explica o técnico de apoio à vítima. “Não nos podemos esquecer que estes violadores sabem manipular as pessoas com quem lidam muito bem.”

A olho nu, Reynhard Sinaga poderia ser, aliás, visto como uma potencial vítima de abuso sexual e nunca como um predador. “Era alguém que até podiam identificar como uma pessoa eventualmente vulnerável porque vivia sozinho num país que não era o dele, tinha uma figura efeminizada — o que, para algumas pessoas, podia ser uma vulnerabilidade —, saía muito à noite e tinha encontros amorosos”, lembra Ângelo Fernandes. “Mas isto é tudo um acto de manipulação pensado, em todos os aspectos, para que as pessoas não o identifiquem como alguém perigoso e possam sentir-se descontraídas, sem estarem vigilantes”, conclui.

Quanto ao modus operandi do agressor, o português explica que “os violadores estão em constante controlo da situação”. Sinaga tinha alugado um apartamento junto à zona boémia de Manchester. Segundo Ângelo Fernandes, a própria localização do apartamento poderá ter sido escolhida para que Sinaga tivesse “fácil acesso” às vítimas e as conseguisse convencer a dirigirem-se a sua casa.

À semelhança do que suspeitam as autoridades britânicas, o português também acredita que o verdadeiro número de vítimas de Sinaga pode ser muito superior, porventura próximo de 190. “Podem ser muitos mais, como a polícia indica, porque a violência sexual contra homens é um tabu na sociedade. As pessoas não estão informadas sobre esta realidade e não sabem que um em cada seis homens é vítima de alguma forma de violência sexual antes dos 18 anos”, diz Ângelo Fernandes.

Devido a este desconhecimento da realidade, quando um homem é vítima de um crime sexual “acredita que está sozinho, que é um caso isolado e que não tem espaço para pedir apoio”, acrescenta o especialista, destacando que quando se trata de homens adultos “o estigma é ainda maior”.

Além disso, as vítimas de Sinaga eram sobretudo heterossexuais. “Um homem que é heterossexual não vai, à partida, ter encontros sexuais com outro homem”, explica Ângelo Fernandes, salientando que a vergonha e silenciamento são ainda mais evidentes nestes casos. “Tendo em conta que ainda existe muita homofobia na sociedade, Sinaga, ao identificar homens em relacionamentos heterossexuais, acabava por ter algum controlo sabendo que esses homens não iam denunciar os casos.”

Embora seja “muito difícil quantificar a dor e o sofrimento provocado às vítimas”, Ângelo Fernandes acredita que a pena aplicada (prisão perpétua, estando o violador obrigado a cumprir um mínimo de 30 anos de prisão efectiva) mostra como é que o sistema judicial britânico está a lidar com estes casos e marca “uma posição” ao reafirmar que a violência sexual é um crime punível.

“Não se trata de relações sexuais que correram mal. Violência sexual não é sexo”, sublinha o técnico de apoio à vítima. Trata-se, sim, de uma violação dos direitos humanos e de um crime, diz.

“Homem que é homem não chora, não pode ser violado”

Os estereótipos existentes na sociedade traçam um homem que “tem de se saber proteger, defender e resolver os seus problemas”. E, no que toca aos valores e ideias tradicionais associados à masculinidade, “homem que é homem não chora, não pode ser violado e não é vítima de abuso sexual”, afirma Ângelo Fernandes.

Tais estereótipos contribuem para que os homens vítimas de crime sexuais não se sintam “seguros” em partilhar os seus testemunhos. “Por isso, acredito que haja muitos outros homens que tenham sido abusados pelo Sinaga e que não se sentem confortáveis ou seguros para partilhar as suas histórias e fazer a denúncia”, conclui Ângelo Fernandes.

O especialista português destaca ainda uma “cultura que responsabiliza as vítimas pelo abuso sexual”, “tal como acontece com as mulheres”, um factor que também contribui para a preservação do silêncio e da vergonha. São estas, diz, “diferentes dimensões de silenciamento constante das vítimas”.

Quebrar o Silêncio

Em Manchester, segundo Ângelo Fernandes, a percentagem de homens, abusados em idade adulta, que denunciam e procuram apoio começa “já a ganhar algum destaque”. Por outro lado, em Portugal, estamos no início de uma “longa caminhada”.

Ângelo Fernandes voltou de Manchester para a sua terra natal precisamente para ajudar a desbravar este caminho. Três anos depois de ter saído do país, regressou a Portugal para criar a Quebrar o Silêncio, uma associação que, desde Janeiro de 2017, presta apoio especializado a homens vítimas de crimes sexuais.

“Eu próprio fui vítima de violência sexual e passei toda a minha vida a achar que eu é que tinha sido o responsável. Sentia vergonha e nojo do que me tinha acontecido e julgava que tinha sido o único caso, que era a excepção”, conta Ângelo Fernandes. Quando começou a procurar ajuda vivia em Manchester e encontrou apoio junto das associações locais. Foi então que, na fase final do processo de recuperação do trauma, Ângelo percebeu “que não havia nenhuma associação deste género em Portugal”, pelo que decidiu regressar e fundar a Quebrar o Silêncio.

Nos dois primeiros anos de existência, 165 homens procuraram o apoio da Quebrar o Silêncio e as denúncias têm vindo a aumentar. Em 2019, a associação registou uma média de oito novas denúncias de abuso contra homens por mês. Embora Portugal esteja ainda “a alguns anos de distância da realidade de outros países em termos de resposta”, à medida que as vítimas vão partilhando o seu testemunho, mais homens se vão identificando e partilhando as suas histórias e formas de lidar com a situação.

Uma relação de proximidade com a vítima

O “grande mito”, diz Ângelo Fernandes, é que “o homem não pode sequer ser vítima”, mas sim agressor. Mas existem outras ideias erradas: “Quando é uma mulher a abusar de um homem esse caso não é visto como violência sexual ou crime, mas sim como sorte”.

“Há também a ideia errada de que o abuso sexual só acontece entre homossexuais ou em prisões. Acontece, mas não é a maioria dos casos”, lembra o especialista, salientando que, frequentemente, o abusador “é alguém da família ou que mantém uma relação de proximidade com a vítima, de amizade ou de confiança para que, exactamente como Sinaga fazia, a vítima não o percepcione como alguém perigoso”.

Além disso, assinala Ângelo Fernandes, caso o homem tenha uma erecção, ejacule ou atinja o orgasmo, há quem considere que a vítima “desejou o abuso” e que tal não constitui um crime. No entanto, o especialista lembra que “é preciso desconstruir estas questões porque uma erecção pode ser apenas uma reacção ao toque físico” e, mesmo que seja no seguimento de um acto sexual, “não significa que tenha havido consentimento”. São estes mitos e inverdades que precisamos de, aos poucos e poucos, ir desconstruindo para que “mais homens possam procurar o apoio que merecem sem terem medo de serem julgados”.

Certo é que os crimes sexuais não são “um tema fácil, seja para mulheres ou para homens”. Importa agora que a sociedade reconheça que “os homens também são vítimas de violência sexual”.

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