Uma folha de alface

Ao longo dos anos tenho-me deparado com as péssimas opções alimentares dos meus alunos. Não consigo deixar de me preocupar quando, à hora de almoço, os pratos dos nossos alunos se revestem de batatas fritas e carne ou carne e batatas fritas, às vezes arroz ou massa, mas normalmente só carne ou só batatas fritas.

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Adolfo Félix/Unsplash

Estou na pele de um professor de ciências em Portugal, mais precisamente no Algarve. Não, esse professor não sou eu, mas podia ser, lecciono a mesma disciplina e parece coincidência. Parece, mas não é, e se contar tudo na primeira pessoa tem mais sentido. Pelo menos para mim. Omito o nome e o lugar por questões de confidencialidade.

Não sei se sou um bom professor, gostaria de pensar que sou. Aos olhos dos outros, dos meus colegas, já tenho nome, sou dedicado e tenho brio no que faço. Respeitam o meu trabalho, pedem-me ajuda e estão sempre disponíveis para ouvir a minha opinião. Mas, e independentemente de ser ou não bom professor, a verdade é que gosto do que faço, e se calhar aqui está a grande diferença. Apesar de todos os problemas à volta da educação, de resto sobejamente conhecidos e batalhados todos os dias, todos os anos, a educação existe, e existe em mim, dentro de casa, ao sair para a rua, no quiosque da esquina, no supermercado, ao chegar à escola. Mas vamos ao que interessa.

Ao longo dos anos tenho-me deparado com as péssimas opções alimentares dos meus alunos. Sem querer repetir a roda dos alimentos e a importância de uma refeição multicolor, não consigo deixar de me preocupar quando, à hora de almoço, os pratos dos nossos alunos se revestem de batatas fritas e carne ou carne e batatas fritas, às vezes arroz ou massa, mas normalmente só carne ou só batatas fritas.

E por não conseguir deixar de me preocupar, todos os dias à hora de almoço sento-me com os meus alunos para falar da necessidade de uma alimentação variada, o porquê das fibras, do peixe e da fruta, promovendo verduras como o maná dos deuses e celebrando efusivamente quando um, ou mais alunos, comem a mais pequena folha de alface! 

Perdoem-me a paixão, mas estamos a falar de crianças, muitas já obesas, outras em pré-obesidade e muitas mais a caminho com todos os riscos associados, do cardiovascular à diabetes, não preciso de me repetir, nós já sabemos de trás para frente, fazemos escolhas, as crianças é que não. Longe do seio familiar acabam a seguir modas e publicidades, viciam-se em açúcar a pontos de passar o dia inteiro a sorver sumos num mundo sem hábitos de desporto e onde o polegar é o membro mais musculoso, fruto de horas sem fim ao telemóvel. Cheios de açúcar até à ponta dos cabelos, muitas das minhas aulas de ciências são passadas com toda a gente em pé a andar de um lado para o outro entre demonstrações e experiências, ou não fossem os petizes incapazes de se sentar por 15 minutos que seja. Sentados, os petizes marinham, literalmente, pelas paredes acima. Eu sei. Já vi. Muitas vezes. Vezes demais.

Portanto, à hora de almoço luto por cada ervilha, por cada grama de fibra, por cada garfada de peixe, aos poucos introduzindo novos elementos nas dietas de quem nos rodeia e cresce todos os dias enquanto falo sobre as suas vantagens e a importância de estilos de vida saudáveis.

Ou lutava. Há pouco tempo recebi um recado de um encarregado de educação a proibir-me terminantemente de obrigar a sua filha a comer alface à hora de almoço. Em casa a rapariga come de tudo, acabando por não só perder a hora de almoço, fruto das minhas insistências, como também a ter medo da hora de almoço, não vá o “professor chato” sentar-se ao seu lado outra vez. Terminava o recado sublinhando o dever de me cingir à sala de aula e pouco mais, de onde, aliás, nunca deveria ter saído. 

Resposta para o encarregado de educação: “Prezado encarregado de educação, muito obrigado pela sua chamada de atenção, a qual agradeço. Deixe-me dizer-lhe, no entanto, que o meu dia de trabalho nunca tem menos de 12 horas. A hora de almoço faz parte dessas horas desde sempre, desde que me lembro de ser professor, de bom grado sacrificando a minha hora de descanso para estar no inferno inaudível do refeitório onde, para todos os efeitos, continuo a trabalhar enquanto falo com os meus alunos, a sua filha incluída, sobre os bons hábitos alimentares. Mas, para evitar mais consequências para a minha pessoa, como bom entendedor asseguro-lhe que não mais passarei a minha hora de almoço com os meus alunos. Daqui em diante almoçarei na sala dos professores, na minha sala ou num dos cafés à volta da escola, em sossego e paz, usufruindo do descanso a que tenho direito para que, à tarde, esteja na melhor forma para me cingir à sala de aula, a mesma sala de onde não voltarei a sair. Cordialmente, assino por baixo.”

E assim foi. Nunca mais voltei ao refeitório e nunca mais almocei entre os alunos. Sob pena de uma queixa ou, pior, uma espera à porta da escola ou, pior ainda, uma surpresa dentro da minha sala de aula, tenho dedicado a minha hora de almoço e o meu período de descanso a fazer o que a lei me dá o direito de fazer: descansar. 

Fruto da ignorância dos pais, deixei de nadar contra a corrente e passei a preocupar-me um pouco mais comigo em vez de com os alunos. 
Terei perdido todo o tempo dedicado? Não creio. Há sempre um aluno a ouvir. Mas agora já não há ninguém a ouvir e eu já estou cansado de me armar em santo das causas perdidas e mártir das mesmas. É o que educação traz. De repente percebemos esta capacidade de mudar o mundo.

Mas não, agora não, comigo nunca mais. E se sem a minha ajuda o mundo continuará a girar, ao mesmo tempo nada mais resta para além de esperar, não, rezar para que entretanto os pais se cinjam ao seu papel de pais. 
 

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