Fisco reconhece que tem de devolver parte do IUC sobre carros importados

Decisão voluntária da AT abre a porta a dezenas de milhares de reclamações. Contribuinte de Leiria recebe correcção de quatro anos mais juros.

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É provável que seja necessário reclamar a devolução para reaver o imposto pago em excesso Paulo Pimenta/ARQUIVO

A Autoridade Tributária (AT) vai devolver cerca de 1050 euros do Imposto Único de Circulação (IUC) a um contribuinte de Pombal, distrito de Leiria, depois de reconhecer que tem usado uma fórmula de cálculo ilegal. É uma decisão que abre a porta a dezenas de milhares de reclamações, porque essa mesma fórmula, que o fisco reconhece agora de forma voluntária ser ilegal, foi usada em dezenas de milhares de carros usados importados na última década. O PÚBLICO pediu números ao Ministério das Finanças, que se mantém atrás de um muro de silêncio.

O despacho da AT a que o PÚBLICO teve acesso envolve o IUC de um Mini 1300 importado em 2008, mas com primeira matrícula emitida na Alemanha em 1996. O fisco calculava o valor do imposto ignorando que o carro já tinha 12 anos de vida e tributava-o como se fosse novo em 2008. Esta forma de calcular o IUC foi usada em dezenas de milhares de carros em Portugal, importados a partir de 2007. E foi considerada uma distorção fiscal ilegal pelo Tribunal de Justiça da União Europeia em 2018. O que levaria o parlamento a corrigir o código do IUC em 2019.

Porém, o dono deste Mini não se conformou com a correcção proposta pelo Governo e aprovada na Assembleia da República. E por isso reclamou junto da AT as liquidações do referido imposto que estavam para trás, tentando reaver o dinheiro pago em excesso. Numa primeira fase, diz Paulo Carido, advogado do Porto que defendeu a causa, o fisco indeferiu essa pretensão. O que levou o queixoso a recorrer ao tribunal arbitral do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) de Lisboa.

 O CAAD aceitou julgar a causa, mas nem foi necessário. Porque, depois de notificado do processo arbitral, os serviços do fisco reavaliaram juridicamente a questão. E acabaram por dar razão ao contribuinte, como consta num parecer aprovado por despacho da sub-directora geral dos Impostos, a 12 de Dezembro de 2019.

Nesse documento, o fisco reconhece que o queixoso tem direito à devolução de parte do IUC cobrado em excesso, durante quatro anos, mais juros de mora, porque o cálculo se baseou “na data da primeira matrícula em Portugal”, tal como estipulava o Código do IUC em alíneas que a justiça europeia consideraria ilegais, em 2019, quando avaliou a contestação de um outro contribuinte de Coimbra.

Ao apreciar a causa do dono do Mini, residente em Pombal, o fisco invoca a correcção feita no Verão passado, segundo a qual o IUC tem de ter em conta a data da primeira matrícula, seja ela em Portugal ou não. Assim, já em Novembro tinha a directora-geral da AT, Helena Borges, chamado a atenção que “importa proceder à revisão do entendimento até agora vigente”, até porque a justiça europeia já tinha condenado o Estado por cobrar impostos a carros usados importados como se fossem novos. E por isso manda devolver 1048,76 euros cobrados a mais, entre 2016 e 2019, ao dono do Mini, que ainda terá direito a receber juros indemnizatórios contados desde a data do pagamento do imposto.

Este é o caminho que poderá ser seguido por dezenas de milhares de outros contribuintes que, desde 2007, importaram carros usados da União Europeia. Porque a todos eles foi aplicada a mesma fórmula do IUC. O PÚBLICO pediu comentários ao ministério das Finanças e à secretaria de Estado dos Assuntos Fiscais, e solicitou números bem como perguntou o que vai fazer o fisco em todos os outros casos. Como noutras ocasiões em que foi questionado sobre impostos que incidem sobre carros, o ministério manteve-se calado.

É provável que seja necessário reclamar a devolução para reaver o imposto pago em excesso. Porém, a correcção só será feita no máximo para os últimos quatro anos. Porque como salienta o advogado Paulo Carido essa é a limitação prevista no código do processo tributário. Correcções de imposto para trás têm como limite quatro anos.

Mesmo assim, podem estar em causa muitos processos. Portugal é um campeão de importação de carros usados. Em 2018 foram mais de 77 mil veículos. E as diferenças de imposto podem chegar aos 800 euros ou mais. Exemplo: um Audi Q7 de 2007 e importado em 2008 pagava cerca de 860 euros de IUC. À luz das regras correctas, pagaria 62 euros. Um contribuinte nesta situação poderá reaver quatro anos de IUC em excesso, ou seja 3200 euros mais juros.

Aqueles com primeira matrícula na UE antes de 1 de Julho de 2007 e trazidos para Portugal depois de 1 de Julho de 2007 (quando entrou em vigor a reforma da fiscalidade automóvel) foram sujeitos a esta distorção fiscal, tal como sancionada pelo Tribunal de Justiça sediado no Luxemburgo.

Este tribunal pronunciou-se em Maio de 2018 num caso de Coimbra. Um clássico de 1966 que estaria já isento de IUC mas que o fisco quis tributar em 2014, dado que a primeira matrícula portuguesa era de 2013. Pagava, portanto, como se fosse novo.

Depois de analisar as regras portuguesas, a justiça europeia lembrou ao Governo que “o artigo 110.º do Tratado sobre o Funcionamento da UE (TFUE) obriga cada Estado-Membro a escolher e a estruturar os impostos que incidem sobre os veículos automóveis de maneira a não terem por efeito favorecer a venda de veículos usados nacionais e desencorajar desse modo a importação de veículos usados similares”.

A equipa das Finanças acatou esse entendimento plasmado no TFUE para o IUC, mas recusa-se a cumprir o mesmo preceito no Imposto sobre Veículos (ISV). Bruxelas diz que Portugal viola o mesmo artigo 110.º, discriminando os carros usados importados no caso do ISV e deu um mês a Lisboa para tomar medidas. Até agora, nada, apesar de em tribunal arbitral o fisco ter sido obrigado por duas vezes a devolver parte do ISV a um contribuinte de Aveiro.

No IUC, por agora, o fisco reconhece que é tempo de refazer contas. Resta saber qual a dimensão da factura e se o mesmo acabará por acontecer ou não no ISV.

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