Carta a um pai

Ensinaste-me a maior lição da minha vida quando, aos 11 anos – hoje seria trabalho infantil – me puseste a lavar cabeças, a receber o dinheiro e a varrer os cabelos do chão do estabelecimento que abriste, pela primeira vez por conta própria. No dia em que sete décadas passaram por ti e tu por elas, agradeço-te por cada cabelo que me foste dando.

70 anos. Trabalhas desde os 12 e, mesmo reformado, continuas dia após dia a levantar-te cedo e a fazer aquilo que aprendeste com o teu pai: cortar cabelos, barbas, aparar bigodes. Conheceste já muitas modas ao longo destes quase 60 anos de “cabeleireiro de homens”, como gostas de dizer, por só recentemente a designação de “barbeiro” ter ganhado um ar moderno e decente.

Fazes parte de uma geração que fez a Guerra do Ultramar, que tantas vezes recordas, que celebras anualmente com os teus camaradas, agora já com as mulheres, filhos e netos. Nunca soubeste ao certo o que lá foste fazer. Apenas repetias que “Angola é nossa” e deixaste cá uma moça que viria a ser a tua mulher, com quem estás a caminho dos 45 anos de matrimónio. Porque é que as coisas hoje não duram assim, pai? Nunca to perguntei, mas também nunca me respondeste.

Aliás, és de poucas falas no que toca a sentimentos. Achas que todos sabemos o quanto nos amas. Não tens culpa. Viveste uma infância sem seres criança, amarrado às antigas cadeiras de barbeiro do avô que, para além do trabalho, tinha outros interesses que pouco passavam pela família. A tua mãe – e tantas da sua geração, quase todas – foi vítima de violências ferozes, mas mantinha a candura do olhar e colmatava, no possível, o pai ausente e egoísta.

És, como todos nós, fruto da tua história pessoal. E daí a dificuldade nos abraços e nos beijos, a quase ausência de brincadeiras em criança. “Vocês sabem”, pensavas e pensas. “Não é preciso dizer o óbvio. Para quê gastar palavras quando o olhar tudo diz?”. Creio ter sido esta uma das tuas divisas. Essa e a do trabalho, da honradez, do não dever nada a ninguém, concretizar o sonho que nos trouxeram os anos 80 de pôr os filhos a estudar na Universidade, para que fossem “alguém”. Nunca duvidei que foste, és e serás sempre “alguém”, como todos os da tua geração. Apanhaste Abril na Primavera da tua vida e tudo estava por fazer. Mas não eras politizado e foste embarcando, como os da tua altura, em promessas que vinham da direita e da esquerda.

A tua política é a do trabalho, do pôr pão na mesa e de entregar a educação dos filhos à mulher. Mas isto sem seres machista. Assim aprendeste e assim as coisas funcionaram. No mundo dos afectos deixavas que a mãe fosse rainha e senhora, mesmo que depois lhe fosses perguntar o que é que os rapazes tinham.

Nunca tivemos conversas sobre o que hoje seria “educação sexual”. Como aprendeste à tua custa e do teu grupo de pares, certamente pensaste que assim também era naquelas décadas dos 80, e dos 90 para o meu irmão. E aprendemos as coisas. Não sei se melhor ou pior, mas sabemo-las.

E por cada dificuldade que se partilha, ainda hoje, ela é sempre dissecada à mesa, altar da memória familiar colectiva. A mesa da cozinha é a peça mais importante da tua casa. Simbolicamente, ela representa a aliança perfeita entre o pragmatismo de uma vida que se não compadece com grandes filosofias e o pão que alimenta a carne e o espírito. Achas que quando deixarmos de respirar acaba tudo, que nada vem a seguir.

Faz-me confusão que acredites no Nada. Mas queres ir para a cova, quando a tua hora chegar, fazendo-te impressão seres cremado. Acho que, lá no fundo, não queres admitir que a tua Sta. Rita ou a N.ª Sra. da Graça que veneras terão alguma coisa que ver com a tua passagem, que todos desejamos venha longe.

Ensinaste-me a maior lição da minha vida quando, aos 11 anos – hoje seria trabalho infantil – me puseste a lavar cabeças, a receber o dinheiro e a varrer os cabelos do chão do estabelecimento que abriste, pela primeira vez por conta própria. Mas isto naquelas que eram, à época, as enormes férias de Verão. E mais uns sábados, claro. Custou-me relativamente, por ver os outros putos a brincar lá fora, mas aprendi o que custa ganhar a vida e como devemos valorizar todos os seres humanos.

Na verdade, ensinaste-me que não há pessoas “importantes” e “não importantes”. São apenas pessoas e todas – ou quase – cortam o cabelo. E os que eu varria apenas mudavam nos tons, pois de resto eram isso mesmo: cabelos, iguais, agora sem uso.

No dia em que sete décadas passaram por ti e tu por elas, não te escrevo com a amargura de um Kafka, mas agradeço-te por cada cabelo que me foste dando, tantas vezes em silêncio, fino e aparentemente inútil, porém, todo junto amparou muitas quedas. E ainda ampara. Que contes muitos, pai!

Sugerir correcção
Ler 1 comentários