Também (não) somos todos Porta dos Fundos

Num Brasil contaminado pelas ideias extremistas de Bolsonaro, a Porta dos Fundos foi a nova vítima. Vivemos num mundo em que os alvos a abater não são os políticos que promovem o ódio e a divisão, mas sim os artistas que procuram a comunhão através do riso.

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Não vi o especial de Natal da Porta dos Fundos. E não preciso de ter visto para falar deste assunto. Porque sei que um projecto de comédia tem apenas de almejar ter piada para ser legítimo. Para alguns de nós, pode falhar. Para outros, pode ser a coisa mais hilariante que alguma vez foi escrita. Independentemente da subjectividade dessa coisa estranha e indefinível que é a graça, a comédia pode e deve existir. Mesmo que seja provocadora, como alguns lhe chamam. Especialmente se for provocadora.

Provocadora: usamos esta palavra demasiadas vezes. O que parecemos não perceber é que a provocação nunca pretende fazer nascer violência, mas sim um confronto de ideias e um desassossego interno. Provocadora no sentido de fazer nascer ideias antagónicas, ou de fazer nascer explosões de excitação por haver alguém que transforma em palavras reais e legíveis, ou em sketches divertidos, aquilo que pensávamos e não éramos capazes de exprimir. Mesmo que esses sketches demonstrem uma realidade alternativa em que a figura mais bajulada da História tem características muito diferentes daquelas que nos foram ensinadas.

Num Brasil contaminado pelas ideias extremistas de Bolsonaro, a Porta dos Fundos foi a nova vítima: dois cocktails molotov foram lançados contra a sede do grupo humorístico. Vivemos num mundo em que os alvos a abater não são os políticos que promovem o ódio e a divisão, mas sim os artistas que procuram a comunhão através do riso.

Muito se falou, em 2015, do quão Charlie Hebdo somos todos. Percebeu-se, ao longo dos dias, das semanas, dos anos, que não. Afinal não. Porque, para muitos, o humor é para existir a menos que nos toque numa vaca sagrada, seja ela uma crença profunda ou o aeromodelismo que fazemos com três amigos de 15 em 15 dias num descampado em Pêro Pinheiro. Vê-se agora que, até desses que diziam ser Charlie, nem todos são Porta dos Fundos. O que mudou? O ataque é o mesmo – com a diferença louvável de que ninguém morreu. A origem é a mesma – comédia com uma religião e as suas idiossincrasias. Então o que mudou? Apenas uma resposta: o alvo.

Há outra diferença: em 2015, os leitores do Charlie Hebdo em Portugal eram uma franja mais curta do que a minha, e olhem que eu sou careca há quase dez anos. Mas os fãs de Porta dos Fundos em Portugal são mais do que muitos. Aqueles que já riram com um sketch do grupo humorístico são muitos mais. Mas, colocados os pratos na balança, entre o que deve ser risível e uma religião, o Porta parece perder. Porque a liberdade de expressão, ao contrário da ficção em que vivíamos antes de ataques destes, não está salvaguardada nem é garantia no mundo ocidental.

“A liberdade de expressão é muito bonita e deve existir, a menos que se goze com uma religião”, dizem eles, legitimando quem fala agora, não com palavras, mas — pior ainda — com actos. E quando a religião não era a deles, estava tudo muito bem. “Gozem com os muçulmanos, que são gente sempre em guerra, crente em profetas menores do que os nossos, e se eles ripostarem, nós mostraremos solidariedade com fotos de perfil a negro e posts condoídos”, diziam eles, demonstrando que a comédia lhes dava um quentinho porque parecia diminuir a crença que odiavam — instrumentalizavam a piada para veicular a intolerância que sempre fora sua, e nunca do texto humorístico. Mas hoje a religião é a deles, e o que vemos é um discurso diametralmente oposto. “Não se goza com o nome de Deus nosso senhor, especialmente numa época natalícia, por isso puseram-se a jeito.” Mas quão fraca tem de ser uma crença para se deixar melindrar com uma brincadeira?

Deste lado do oceano, um abraço de solidariedade daqueles — ainda muitos — que estão ao lado da Porta dos Fundos.

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